A norueguesa Aurora subiu ontem ao palco do Campo Pequeno, em Lisboa, para o último concerto da sua digressão. Foi uma noite de celebração partilhada, de catarse de emoções e de uma comunhão artística entre palco e plateia.
Desde que surgiu, em 2015, com o single “Runaway”, Aurora Aksnes construiu um percurso artístico marcado por uma estética singular, fortemente ligada à natureza e ao misticismo nórdico.
É dona de uma voz cristalina e de uma presença forte em palco. O corpo em movimento contínuo e a forma como interage com o público criam um ambiente quase cerimonial, em que cada canção se torna um ritual. Os fãs vestiram-se a rigor para a sessão e ao final da tarde, nas imediações do Campo Pequeno, abundavam as vestes fluidas, brancas, de renda ou tule, e os adornos floridos.
Uma artista que cria mundos
O Campo Pequeno foi cenário de um concerto onde a luz e os vídeos tiveram grande impacto. E começou logo antes da entrada dos músicos em palco, com a projeção de uma Aurora gigante, quase etérea, que recebia luz e a retribuiu na direção da plateia — imagem simbólica de uma artista que se afirma como transmissora de energia emocional. Logo a abrir, “Churchyard” e “Soulless Creatures” estabeleceram o tom de introspeção e beleza crua que marcaria a noite.
Entre canções, a artista falou com vulnerabilidade e humor. Recordou a sua passagem pelo NOS Alive, em 2024 e a forma calorosa como foi recebida. “Tenho medo de festivais”, confessou, “mas neste consegui ter espaço para criar o meu próprio universo”. A plateia ouviu atenta, em silêncio, como quem escuta um segredo importante e depois explodiu em aplausos.
Uma noite de conexão profunda
No Campo Pequeno, Aurora cantou mas também expôs fragilidades, partilhou esperanças e convocou os presentes a aceitarem a tristeza e a libertarem as emoções, que se acumulam no corpo. Falou sobre os homens que não são incentivados a chorar e explicou que “The river”, o tema que se seguiu, é sobre o seu líquido preferido: as lágrimas.
Incentivou o público a dançar, a amar e a mandar energia positiva para os músicos.
A sequência de canções “A Soul With No King”, “All Is Soft Inside” ou “Heathens” mostrou a amplitude emocional da sua música. As projeções de vídeo, os jogos de luz e a simplicidade coreográfica criaram momentos de pura intensidade.
Em “Murder Song”, surgiram imagens de Aurora a segurar um punhal e a combater uma versão de si mesma. Ilustração, de forma simbólica, dos conflitos internos que tantas vezes percorrem as suas letras.
Celebração do amor e da diferença
Durante “Exist for Love”, as luzes estiveram mais acesas, a interação entre artista e plateia foi ainda maior. Aurora reagiu com comoção e agradeceu às mulheres que a acompanharam na banda. No final de “Rainbow”, ergueu uma bandeira arco-íris e todo o tema teve imagens suas, iluminada por um “sol” simbólico.
A artista fez piadas, leu mensagens dos fãs e agradeceu várias vezes a quem esteve presente. Falou da sua infância reservada e de como momentos como este a fizeram gostar mais das pessoas. O concerto prosseguiu com “Eyes of a Child”, “Runaway” e “The Seed”, num crescendo de energia emocional e comunhão.
A beleza do último ato
Em “Starvation”, a banda entrou em modo rave e a sala reagiu com entusiasmo. Já em “Giving Into the Love”, Aurora dançou sem coreografia, em total liberdade. Foi um dos momentos mais genuínos da noite — e também um dos mais humanos.
O encore trouxe “Cure for Me”, “Some Type of Skin” e, por fim, “Invisible Wounds”. Sozinha ao piano, Aurora ofereceu uma canção para “vazar as emoções do corpo” e para todos os que vivem com feridas invisíveis.
“Tenho só mais uma coisa para vos dizer, meus guerreiros e guerreiras: amo-vos muito”, disse antes de se despedir. Lisboa foi o último palco da digressão, e Aurora fez questão de o sublinhar com emoção verdadeira.
Fredrik Svabø trouxe celebração e experimentalismo nórdico
Fredrik Svabø, músico, compositor e produtor norueguês, foi um dos artistas convidados para abrir o concerto de Aurora em Lisboa, a 9 de maio de 2025, no Campo Pequeno.
Fredrik Svabø é guitarrista e cúmplice de longa data da artista norueguesa. É uma peça fundamental no universo sonoro que Aurora construiu nos últimos anos.
Durante a sua atuação, explicou ao público que estava em modo de festa, a apresentar o novo álbum Kingo’s Treat, lançado em março de 2025, um trabalho que representa uma nova etapa artística do seu percurso musical.
Kingo’s Treat é um álbum que celebra o mistério, a melancolia e a beleza da imperfeição, com temas longos e predominantemente instrumentais.
Pomme emocionou Lisboa com a sua delicadeza militante e voz confessional
Seguiu-se Pomme, a cantora e compositora francesa Claire Pommet, que atuou antes de Aurora. A sua presença em palco, discreta e emotiva, foi a introdução perfeita para a noite. Com a sua voz suave Pomme envolveu o público numa atmosfera intimista, onde a delicadeza ganhou protagonismo.
Nascida em 1996, nos arredores de Lyon, Pomme é uma artista multifacetada: toca diversos instrumentos, compõe as suas canções e assume a produção de grande parte do seu trabalho. Começou a dar nas vistas com o EP En cavale, em 2016, mas foi com o álbum Les Failles, de 2019, que alcançou maior notoriedade.
Esse disco, que aborda temas como a ansiedade e a fragilidade emocional, valeu-lhe o prémio de Álbum Revelação do Ano nos Victoires de la Musique, em 2020. No ano seguinte, foi distinguida como Artista Feminina do Ano, confirmando o seu estatuto na nova geração da chanson française.
Em palco, Pomme apresenta-se de forma minimalista, quase desarmada, confiando na força das palavras e na emoção que imprime em cada canção. Acompanhada por instrumentos como o autoharpa, a guitarra ou o omnichord, cria paisagens sonoras que oscilam entre o folk, o pop alternativo e a tradição francesa.
Teve especial destaque, nesta sua curta apresentação, o tema “On brûlera”, uma das canções mais emblemáticas de Pomme. É uma balada melancólica e poética que combina a delicadeza da voz da artista com uma letra intensa e simbólica.
A canção aborda a temática da marginalidade e do amor não convencional, evocando um desejo de liberdade perante os julgamentos sociais. Com versos como “On brûlera toutes les églises s’il le faut pour s’aimer encore” (“Queimaremos todas as igrejas se for preciso para continuarmos a amar-nos”), Pomme critica as instituições que condenam certos tipos de amor e afirma-se como uma voz queer dentro da música francófona.
Musicalmente, a composição é minimalista, com arranjos suaves que realçam a fragilidade emocional da interpretação. “On brûlera” tornou-se um hino íntimo e corajoso, refletindo a capacidade de Pomme para transformar a vulnerabilidade em beleza e resistência.
A noite foi de Aurora, mas Pomme deixou claro que tem espaço próprio e deixou semeada a vontade de conhecer mais.



















