Depois de ter esgotado dois Coliseus dos Recreios, em janeiro, Bernardo Espinho, ou “Buba”, como é conhecido artisticamente, voltou a encher a mítica sala lisboeta, em dose dupla. Tal como acontecera no início do ano, estes espetáculos não seriam apenas um concerto: muito para além dos convidados especiais que nos apresentou, ao longo da noite, Buba Espinho compôs uma autêntica ode ao Alentejo, da qual não nos iremos esquecer tão depressa.
Aos primeiros acordes de “Afã”, somos transportados para o Alentejo profundo. Para os arredores de Pax Julia. Terras governadas, em tempos idos, por Al-Mu’tamid ibn Abbad, rei e poeta. Há quem diga, inclusive, que terá sido o responsável pela letra que enfeita a canção que escutamos.
É o nascer do sol do espetáculo. Talvez por isso sintamos ligeira fadiga matinal. Afã. Porém, rapidamente despertamos.
“Boa noite, Coliseu! Bem-vindos!”, cumprimenta-nos Buba Espinho. Será ele o nosso guia, ao longo do percurso que faremos pelas planícies de além Tejo.
Começamos por visitar o “Jardim Paraíso”, música do álbum homónimo, de 2020. “Obrigado!”, agradece o cantor, no final. “Tudo bem disposto?”, pergunta. Depois, apresenta os músicos que o acompanham: Guilherme Melo, na bateria, Rodrigo Correia, no baixo e contrabaixo, Francisco Pestana, na voz, Luís Aleixo, na guitarra, António Andrade Santos, nas teclas, e Bruno Chaveiro, na guitarra portuguesa. Chaveiro seria mesmo apelidado de “Nossa Senhora de Fátima”, por ter aparecido na vida de Buba Espinho numa altura em que este, habituado a conviver com alentejanos, se encontrava “perdido” na capital. Na sequência, escutamos “Digo que Devo Continuar”, pelo que seguimos em frente.
É bom ver caras conhecidas…”, reflete Buba Espinho. “É a vossa primeira vez por aqui?”, questiona o artista. “Malandros!”, atira, perante a resposta de parte do público. Fala dos concertos de janeiro e explica que quis fazer algo diferente, desta vez. “É um dia especial. Dia Internacional da Mulher. E a mulher mais especial da minha vida deixou-nos no ano passado…”, conta-nos, antes de dedicar “Rosa Albardeira” à sua mãe.
Neste passeio, também há espaço para descansar. Respirar e ouvir histórias. Buba Espinho fala-nos de quando foi convidado por Nininho Vaz Maia para cantar com um dos seus concorrentes ao The Voice, popular concurso da televisão nacional. “Um talento incrível! Maior, só o seu coração!”, conta-nos o cantor, referindo-se a Ricardo Maia, com quem interpreta “Roubei-te um Beijo”, tema popularizado por Buba Espinho e António Zambujo, em 2020. A canção é acompanhada pelo coro que preenche o auditório, palmas incluídas. No final, as qualidades artísticas do jovem são exaltadas. “Portugal tem muito talento…”, medita o nosso anfitrião. Na sequência, pede um caloroso aplauso “para os enormes Bandidos do Cante“, os próximos convidados a subir ao palco do Coliseu dos Recreios.
“Estamos na Casa do Alentejo! Não é ali, mas aqui!”, diz o cantor, a propósito do conhecido espaço, sito na Rua das Portas de Santo Antão e vizinho da sala onde nos encontramos.
Ouvimos que “Já Não Há Pardais no Céu”, talvez por ser inverno. Mas a primavera está aí, à porta. Enquanto esperamos, surge Vitorino Salomé, sob uma enorme salva de palmas. “Se há pessoa que elevou o Alentejo ao mais alto nível, é este Senhor!”, diz Buba Espinho.
“O Cante Alentejano era desprezado pelo Estado Novo e a nossa vingança foi ver isto confirmado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade!”, conta Vitorino, antes de agradecer a Buba Espinho e aos Bandidos do Cante, por continuarem a promover a cultura alentejana.
Entra em cena o Grupo Coral Infantil de Ourique, vila onde, rezam as crónicas, Dom Afonso Henriques terá sido aclamado Rei de Portugal. Juntamente com Buba, Vitorino e os Bandidos, os jovens ouriquenses oferecem-nos “Um Dia Hei-de Voltar” e “Menina Estás à Janela”. “Lindo!”, grita-se, na plateia. O Cante está em boas mãos.
Lembrando que é o Dia da Mulher, gostaria de chamar uma das melhores cantoras da minha geração: Bárbara Tinoco!”, anuncia Buba Espinho.
“Sinto que o Buba trouxe a este concerto todas as pessoas do Alentejo!”, confessa Bárbara. “É um concerto muito generoso e eu sou muito sortuda: quando cantamos juntos, sou quem o ouve de mais perto. Espero não estragar esta moda…”. E ficamos com a “Gotinha de Água”, “entre pedras e pedrinhas”, com a colaboração do Grupo Coral Infantil de Ourique.
“Prometo que saímos daqui…”, canta o coro do Coliseu dos Recreios, a uma só voz.
Depois de pedir uma grande salva de palmas para Bárbara Tinoco, Buba Espinho chama ao palco o seu “amigo de sempre”, João Domingos. Juntos, convocam o “Zé de Alfama”, com a ajuda de um belo solo de bateria de Guilherme Melo e das palmas da plateia. Na sequência, “Fado Loucura”, ainda com João Domingos aos comandos da viola. Terminada a viagem pelos caminhos do Fado, regressam os Bandidos do Cante. Mas não vêm sozinhos. Consigo, trazem os algarvios D.A.M.A., responsáveis pela composição de “É o que É”, tema que ecoa pela sala, nos minutos seguintes, cantado, em uníssono, pelo público presente.
Pede-se “barulho” para os D.A.M.A. e para os Bandidos, ao mesmo tempo que se introduz a próxima paragem: “Casa”, canção que, desde o primeiro segundo, serve de catalisador, para que se acendam milhares de luzes, da plateia às galerias, passando pelos camarotes.
“A dar-te um beijo…”, canta o Coliseu, incentivado pelos músicos. “Esta canção fez-me acreditar que a música pode mudar a vida das pessoas”, escutamos.“Isto está quase a acabar, mas há uma sessão à meia noite!”, graceja Buba Espinho, confessando que foram dias intensos, aqueles que passou, juntamente com todos os artistas e técnicos que o acompanham, de modo a que pudessem produzir o melhor espetáculo. “Vim do interior, do fim do mundo, pulando degrau a degrau, até chegar aqui… Nem sempre foi fácil… Nem sempre salas cheias…”, medita. “A indústria dizia que o Cante não enchia salas…”, continua.
“Viva o Alentejo!”, grita-se, em resposta.
Continuamos com “O Verão, O Alentejo e Os Homens”. Talvez, agora, já haja pardais…
O público já largou as cadeiras. Está de pé e a longa ovação com que presenteia Buba Espinho deixa o cantor emocionado: “No final, deviam pôr-se em fila, para que eu pudesse apertar as bochechas de cada um! É a música e a cultura da minha terra… Não imaginam o prazer que é estar a partilhar isto convosco!”.
Entretanto, “Não é Tarde nem é Cedo”, mas o dia vai longo e a lua já espreita, orgulhosa, entre os pingos de chuva.
Ainda há tempo para ouvir que “Os Guardas Bateram”. Talvez porque, inadvertidamente, tenhamos roubado o galo. Mea Culpa. Nisto, Buba Espinho “foge” do palco, mas é substituído pelas Cantadeiras da Essência Alentejana, que cantam a “Rosa Branca Desmaiada”. Mais uma ode ao Alentejo.
Lá fora, é noite cerrada. Porém, no Coliseu dos Recreios, é pôr-do-sol. O crepúsculo, na planície alentejana. Os instrumentos não “tangem e rangem”. Não há “cordas e harpas, timbales e tambores”, como descrito por Bernardo Soares, no Livro do Desassossego. Há vozes. As das Cantadeiras, as de todos aqueles que passaram pelo palco e as dos Bubedanas e outros grupos corais alentejanos, que invadem a plateia do Coliseu, vindos de todos os lados. E há as vozes do público. E a de Buba Espinho, que se ergue, sob os holofotes, no centro da sala. Há Cante Alentejano.
“Não consigo encontrar palavras. É a primeira vez que estou nesta sala, a solo. Isto não é o Buba, mas toda uma nação alentejana!”. São estas as palavras com que Bernardo Espinho se despede, não sem que, antes, peça um aplauso para todos os artistas e grupos corais que passaram pelo palco do Coliseu dos Recreios: “eles é que são a voz do Alentejo!”.
Quanto a nós, ao cair do pano, acordamos. Não estamos na planície alentejana, “entre pedras e pedrinhas”, mas no meio do chato e corriqueiro bulício citadino. Mas ninguém nos roubará da mente a viagem que fizemos, durante hora e meia, pelas terras de Além-Tejo.



















