O passado dia 5 de abril ficou marcado pela primeira edição do festival Bilha d’Aço, evento que decorreu na Sociedade Musical e Desportiva de Caneças, Vetusta Vila do Concelho de Odivelas, famosa pelas suas lavadeiras, sobre quem cantou, um dia, Amália Rodrigues. O cartaz, integralmente composto por bandas portuguesas, incluía Vaneno, Murro e In Chaos, valores emergentes do cenário underground nacional, para além dos consagrados Bizarra Locomotiva.
Vaneno
A abertura de hostilidades é da responsabilidade de Vaneno. Apesar de alguns percalços técnicos, que atrasam o início do concerto, o quinteto entra em cena disposto a não poupar uma gota de suor, descarregando todos os decibéis que traz na bagagem.
A sequência inicial transporta-nos até ao EP Struggle Through Absurdity, registo de estreia da banda, editado em Novembro de 2020. Ouvimos “Glorybringer” e “Deceiver”. No final, escutamos as primeiras palavras do vocalista Alexandre Fernandes: “Como é, pessoal? Está-se bem?”.
A performance de Vaneno divide-se entre o Struggle Through Absurdity e músicas que farão parte do Chaos, Hostility, Murder, disco que deverá ser editado ainda este ano. A esta hora, a sala não está cheia, mas o aroma do Sludge Metal que vai sendo servido pelos lisboetas, temperado com doses subtis de Death e Doom, chama cada vez mais gente ao salão de festas.
“Mexam-se!”, ordena o cantor, enquanto soam os primeiros acordes de “Yeti”. “Obrigado!”, agradece, quando termina o tema. Depois, “Eldritch Truth”.
“Vamos para o Inferno Mental”, anuncia Alexandre, sob as luzes vermelhas que inundam a atmosfera. Ficamos com “Ad Nauseum” e “Dark Lord”, numa altura em que se vão observando os primeiros ensaios de um circle pit. “Afinal, estão vivos! Já vejo malta a mexer”, regozija-se o frontman. “Esta sala tem 145 anos e vai ter que aguentar com isto!”.
Durante “Nightrider”, o músico atira o boné para a plateia, como que celebrando o caloroso abraço que recebe da audiência, cada vez mais numerosa.
“Tudo o que é bom acaba depressa.”, lamenta Alexandre, antes dos habituais agradecimentos à organização do festival e ao público que chegou mais cedo, para assistir ao concerto de Vaneno. “Vamos tocar mais um som: é do álbum que está prestes a sair!”.
“Necropotent” fecha um set intenso, que não terá deixado ninguém indiferente. O peso e o groove destilados por Vaneno terão, certamente, conquistado novos seguidores!
Murro
Segue-se a atuação de Murro, formação oriunda de Setúbal, nas margens do Sado, que navega a onda Hardcore/Punk.
“Galinhas”, o primeiro tema que ecoa pela sala, é a única passagem pelo disco Misantropo, registo de 2020. Depois, enveredamos pelas Dissertações de um cidadão comum desesperado, prestes a cometer um atentado, álbum lançado em novembro de 2024.
As letras da banda abordam questões que afetam o nosso quotidiano, funcionando como um autêntico apelo à revolta, feito pela personagem assumida pelo vocalista Hugo Cão, que representa, na perfeição, o tal “cidadão comum desesperado”. Sofre “Bastonada”, diz-se “Sujo” e enfrenta “Tanques”. Entrega-se à loucura, enquanto vai pegando em folhas de papel, espalhadas pelo palco, e nas quais estarão inscritos os pensamentos que o inquietam.
“Vamos passar ao próximo tema.”, anuncia o frontman. “Chama-se Lagartos e é dedicado a todos os homens que trabalham na fábrica do ferro”. Durante a música, ajoelha-se. É um homem em catarse, mas isso não parece trazer-lhe alívio.
Se a canção anterior foi dedicada aos homens trabalhadores, a próxima vai para todas as mulheres trabalhadoras. E ficamos com “Amniocentese”, enquanto o vocalista continua a rasgar os papéis que o atormentam e com que limpa o suor nervoso. Depois, atira-os para a plateia. “Tragam uma vassoura!”, sugere o guitarrista Pedro Silva, ou “Macaco Rápido”.
“Esta fala do SNS, uma das coisas mais importantes que temos.”, explica Rui Cão. No final do tema, um apelo: “Nunca deixem cair o SNS!”. Entretanto, chegam “Belarmino” e “Elizabete”, sendo que esta é “dedicada a todas as Elizabetes deste país”.
“Facada” é a penúltima música tocada por Murro. Depois, agradecimentos à organização do Bilha d’Aço e à Sociedade Musical e Desportiva de Caneças.
Aos primeiros acordes de “Força de Cavalo”, o tema que encerra o concerto, Rui desce à plateia e cumprimenta a audiência, antes de regressar ao palco, para voltar a embarcar num estado catatónico. “Usem a vossa força de cavalo!”, incentiva-nos Rui Cão, no final de um espetáculo que foi um verdadeiro murro no estômago, no melhor dos sentidos!
In Chaos
Caminhamos para o pôr-do-sol, quando entra em cena In Chaos, conjunto que nos oferece uma proposta claramente diferente das anteriores.
“Something You Can’t Be”, malha de abertura do mais recente registo da banda, Hope Wears Black, de 2024, é a primeira música que se faz ouvir, transportando-nos, imediatamente, para um universo Heavy/Thrash Metal mais clássico. Na sequência, um regresso a 2016, altura em que os lisboetas editaram o seu primeiro álbum, para escutarmos “In Hell” e “Drop Zone”.
A performance de In Chaos caracteriza-se pela simbiótica alquimia entre as guitarras de Jorge Martins e André Lopes, intercalada por inebriantes e virtuosos solos, algo que tem o condão de cativar, instantaneamente, não apenas os fãs do Metal “tradicional”, digamos assim, mas também os amantes de sonoridades mais pesadas.
Segue-se “War is Coming”, outro tema novo. No final da canção, o baixista e vocalista André Marinho aproveita para agradecer à organização do festival e a todas as pessoas e entidades envolvidas, sublinhando a importância de apoiar este tipo de eventos.
Continuamos com “Misunderstand” e desaguamos em “Roots of Hate”, não sem que, antes, Marinho faça um convite: “A malta que está lá em cima, que venha aqui para a frente! Este é o tema do mosh! Do segundo álbum, fucking Roots of Hate!”. A timidez vai abandonando a audiência e forma-se um pequeno circle pit.
“Prontos para o último tema?”, pergunta André Marinho. “We All Die” é a derradeira malha tocada por In Chaos, ao ritmo das palmas do público. No final, fica a convicção de que esta banda é já uma certeza, quando pensamos nos valores emergentes da música pesada nacional.
Bizarra Locomotiva
São 21h00, quando a Bizarra Locomotiva chega à estação de Caneças, trazendo, consigo, o “Vendaval Utópico”. Rapidamente, deixamo-nos encher de “Volúpia”, entramos na primeira carruagem disponível e embarcamos numa viagem musical que irá percorrer grande parte da discografia daquela que é uma das mais criativas e consistentes bandas portuguesas.
A sequência inicial remete-nos para o Volutabro, disco editado em Setembro de 2023 e a obra mais revisitada da noite, mas estamos certos de que muitas outras paragens faremos, ao longo do itinerário. Entretanto, surgem “Gatos do Asfalto”, a primeira de duas passagens pelo álbum Bestiário, de 1998, e o catalisador para que os crowdsurfers se façam às ondas sonoras que exalam do palco.
Chega o “Mortuário”.
“Tu! Eu!”, canta Rui Sidónio. “Pele na pele!”, responde a audiência. Por esta altura, banda e público já se fundiram, num só corpo. “Bizarra!, Bizarra!”, grita, em êxtase, a escumalha que preenche o auditório. Segue-se “Vejo-me Fantasma” e a primeira incursão de Sidónio pela plateia, para nos conduzir ao “Ergástulo”. Caneças não parece temer o cárcere e canta, a plenos pulmões:
“Basta! Sou estrume! Esta é a minha certeza!”
No palco, as notas tocadas por Alpha, Rui Berton e Miguel Fonseca promovem a atmosfera ideal, tendo em conta que estamos a ser levados para a “Vala Comum”. Quando termina a marcha fúnebre, uma depressão que anima, os sobreviventes gritam por Caneças, como se a vila que nos recebe fosse o último elo entre a salvação e a perdição…
Apresenta-se o “Vulnerável Prostituto”, de “pulsos cortados”, e o palco é invadido por corajosos stage divers. Depois, entra em cena uma espécie de acólito, segurando aquilo que parece ser um livro sagrado, e é-nos oferecido um “Sudário de Escamas”. Sidónio volta a descer do púlpito, para nos ajudar a vestir a indumentária. “Escondo o corpo num sudário de escamas…”, escutamos, em transe. Na sequência, testemunhamos a “Volição dos Escravos” e regressamos ao Álbum Negro, deixando-nos cair no “Êngodo”, enquanto se vai desenhando um circle pit, no coração da Sociedade Musical e Desportiva de Caneças.
O espetáculo prossegue, ao som de “Vector Arcano”, antes de nova viagem ao passado. Os primeiros acordes de “Na Ferida Um Verme” convocam um coro de palmas e “Foges-me em Chamas” é cantada em uníssono. Pelo meio, Rui Sidónio volta a descer à plateia, para nos trazer “O Frio” e “Moscas”, temas retirados do álbum Ódio, de 2004.
Perto do final, uma surpresa: “Apêndices”, malha que integra o registo de estreia da banda, o homónimo Bizarra Locomotiva, editado há mais de 30 anos. A música funciona como uma ode a todos aqueles que têm acompanhado o grupo, ao longo das últimas três décadas. “São todos escumalha! Eu sou escumalha! Apêndices humanos!”, cantam, a uma só voz, Caneças e Rui Sidónio.
Ainda há tempo para ouvir o palpitar da “Veia do Abandono”, momento em que Sidónio cede ao calor (humano) que se faz sentir, libertando-se dos calções. Depois, quando o “Anjo Exilado” desce à terra, chegamos à última estação, infestada pelo “Escaravelho”. Porém, com uma nuance: enquanto canta uma das mais populares músicas da Bizarra Locomotiva, Rui Sidónio substitui “o escaravelho” pela “Bilha d’Aço”. Uma justa homenagem à organização do festival e, esperamos, um tónico para que futuras edições aconteçam.
Ao cair do pano, a sensação geral é de que as horas passaram a correr e que a viagem não terá durado mais do que breves segundos. Não sabemos quando voltará a passar a Bizarra Locomotiva, mas já comprámos bilhete. Até lá, seguimos de carro, transportando a bilha (de aço!) que continha a água com que lavámos a alma.




















