“Era o dia da festa, Maio de amores”, cantava Zeca Afonso, em 1971, sem saber que estava a dar o mote para o Festival do Maio, evento promovido pela Câmara Municipal do Seixal, no idílico cenário do Parque Urbano da Cidade.
Tivemos oportunidade de acompanhar o primeiro dia desta 6ª edição, cujo cartaz incluía, pela primeira vez, um alinhamento inteiramente dedicado ao Rock. Enquanto caminhávamos pelo parque, para nos encontrarmos com Luís Varatojo, curador do festival desde a sua génese, o recinto ia enchendo. Gente de todas as idades e de diferentes gerações confluía para as imediações do palco, mas também para a zona de restauração, de onde se tinha uma vista deslumbrante sobre a baia. Ao longe, o Tejo espreguiçava-se, enquanto o sol descia sobre as suas águas.
Segundo Varatojo, a ideia de fazer este tipo de festival, de cariz interventivo, estava em sintonia com a vontade da Câmara Municipal do Seixal, funcionando como uma espécie de sucessor do antigo Cantigas de Maio. Ao longo das primeiras edições, hip-hop, world music e electrónica foram os estilos predominantes, por serem aqueles em que, dentro do panorama nacional, se encontrava artistas com uma vertente mais interventiva.
Este ano, porém, os novos discos de Mão Morta e Linda Martini, Viva la Muerte! e Passa-Montanhas, respectivamente, e a celebração dos 40 anos de Cerco, dos Xutos & Pontapés, permitiram oferecer aos fãs de Rock um dia inteiramente dedicado a este tipo de sonoridade. Sobre Cerco, dos Xutos, Luís Varatojo diz que o álbum é um marco muito importante para a sua geração, em geral, e para si, em particular, sendo o disco mais contestatário da banda.
Para além da música, mantém-se as projeções de vídeopoemas interpretados por personalidades da cultura portuguesa, algo que, para Luís Varatojo, já se tornou no ex libris do Festival do Maio.
Mão Morta
O sol já se esconde, sob as águas do Tejo, quando Mão Morta sobe ao palco do Festival do Maio, para gritar Viva la Muerte!
O novo registo da banda liderada por Adolfo Luxúria Canibal é uma obra conceptual, cujo cenário é um mundo distópico, em que o líder é a voz da nação, promovendo o pensamento único. Não é uma realidade que desconheçamos e não é ao acaso que todos os elementos do conjunto bracarense estão vestidos com trajes que remetem para os militares de Abril. Afinal, o disco foi composto numa altura em que se celebravam os 50 anos da conquista da Liberdade.
No púlpito, Adolfo encarna o líder, clamando por “Deus Pátria Autoridade”, a primeira canção que ouvimos. Na plateia, nós somos o povo submisso, mas apenas à música e às palavras que ecoam por todos os cantos do Parque Urbano do Seixal e que nos vão relembrando tempos negros, que já vivemos.
Viva la Muerte! é tocado na íntegra, passando por todos os capítulos, incluindo “É Proibido”, “A Liberdade” e “Pensamento Único”. Pelo meio, vozes oferecem-nos memórias e testemunhos do passado, ilustrados pelas imagens que vão passando na enorme tela que enfeita o palco.
“Lá vêm eles, cheios de soberba, de rei na barriga, a pregar a cartilha”, ouvimos, em “Líder Povo Nação”.
“Viva la Muerte!”, tema que dá nome ao álbum editado em Janeiro deste ano, é a última música que escutamos. “Ninguém nasceu p’ra ser servil e morrer!”, canta Adolfo Luxuria Canibal, marchando e gesticulando, enquanto é acompanhado pelo coro do Maio.
Depois deste verso, cai o pano e guardamos a ideia, preparando-nos para o que se segue.
Linda Martini
Linda Martini sobe ao palco debaixo de enorme ovação.
Já se passaram duas décadas sobre o dia em que fomos enfeitiçados pelos seus Olhos de Mongol, o registo de estreia. Ao longo dos anos que nos conduziram até hoje, o conjunto atualmente formado por André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Rui Carvalho, o Filho da Mãe, foi construindo uma carreira sólida, tornando-se numa das mais criativas e prolíficas bandas da nova geração. Isso é visível a olho nu, atendendo à quantidade de fãs que se acumula nas primeiras filas.
“Assombro” e “Uma Banda” são as primeiras canções que se fazem ouvir. Ambas fazem parte do Passa-Montanhas, álbum que o conjunto lançou no início do ano e que, segundo os próprios, é o trabalho em que se viram “mais para dentro, mas que também mais olha para o que se passa lá fora.”.
Entre as músicas do novo disco, que, naturalmente, merece honras de destaque, vamos recuando no tempo e revisitando obras de um passado mais ou menos recente. São os casos de “E Não Sobrou Ninguém” e “Boca de Sal”.
“Boa noite!”, cumprimenta-nos Cláudia Guerreiro. “É uma maravilha estar aqui, entre vocês e Mão Morta!”.
Depois, voltamos a colocar o Passa-Montanhas. Sentimos “Coracões Rápidos” bater. Gritamos “Meu Deus” e fugimos do “Cão Tinhoso”. Entretanto, “Faz-se de Luz”. André Henriques fala-nos do tema, explicando o duplo sentido do título e da própria letra. Critica-se o “facho de luz”, aquele que “tudo apaga, diz tudo e o seu contrário”.
Invadimos a Casa Ocupada, registo de 2010, e ouvimos o coro da “Juventude Sónica”, sob uma tempestade de aplausos, e ainda há tempo para ouvir a Linda Martini cantar “Eu Às Vezes Perco-me”, a última das novas canções que desfila pela noite seixalense.
Para o final está guardada uma viagem ao passado.
“A próxima é antiga”, informa-nos Cláudia. “Começa com o André.”. Ficamos com “Amor Combate”, música que é cantada em uníssono, sendo que o epílogo é feito com “Cem Metros Sereia”, o que funciona como catalisador para que alguns crowdsurfers se lancem ao mar de gente que preenche o recinto.
Terminado o passeio com a Linda Martini, as gentes preparam-se para receber o convidado principal.
Xutos & Pontapés
A encerrar o primeiro dia do Festival do Maio, Xutos & Pontapés, a mais popular banda de rock portuguesa, capaz de encantar as diferentes gerações com que se foi cruzando, ao longo de quase cinco décadas de carreira. Prova disso, o facto de, bem perto das 12 badaladas, o recinto estar repleto de novos e velhos, que esperam, ansiosos e em perfeita harmonia, pelo começo do espetáculo.
Em 1985, os Xutos editaram Cerco, disco que celebra 40 anos e cuja mensagem parece ser tão atual como seria na altura em que saiu. Por isto mesmo, e por se enquadrar, na perfeição, no espírito do festival, faz sentido que seja esta a obra mais revisitada da noite.
Porém, a viagem inicial é feita “de Bragança a Lisboa”, ao som de “Para Ti Maria”. No final, António Manuel Lopes dos Santos, o “Tim dos Xutos”, como gosta de se apresentar, saúda-nos: “Boa noite, Festival do Maio! Aqui, Xutos & Pontapés!”. Os aplausos ecoam pela plateia, “Enquanto a Noite Cai”, canção que, tal como a anterior, é parte do álbum 88, registo que levou o nome do ano em que foi forjado.
Depois, “Privacidade”, passagem pelo XIII, obra de 2001.
Tim não esconde a satisfação por estar a participar num evento deste cariz e por ver casa cheia. “Obrigado por encherem esta praça!”, agradece, explicando, de seguida, que preparam “dois ou três temas, de propósito, para esta ocasião.”.
O primeiro chama-se “Esquadrão da Morte”, música tocada ao vivo no mítico Rock Rendez-Vous, em 1984, e cujo solo que emana da guitarra de João Cabeleira é acompanhado pelas palmas do público que enche o recinto.
Na sequência, mergulhamos no Cerco, disco editado há 40 anos e que, na altura, foi uma verdadeira pedrada no charco, se pensarmos no panorama musical nacional, abordando questões sociais e políticas com as quais se deparavam os jovens da época. “Cerco”, “Voo das Águias” e “Barcos Gregos” foram os temas escolhidas para ilustrar esta obra, mas não só…
Em 2010, de modo a celebrar o 25º aniversário de Cerco, o álbum seria reeditado, incluindo algumas canções novas e uma versão de “Vossa Excelência”, dos brasileiros Titãs. É esta a música que se segue. Uma pérola retirada do fundo do baú. “Vamos tocá-la só hoje.”, avisa Tim. “O Cabeleira dá o mote.”.
Seguem-se “Remar Remar” e o “Inferno (Parte II)”, até que chega Zeca Afonso e o “Coro da Primavera”, versão feita pelos Xutos & Pontapés para a compilação Filhos da Madrugada, que reuniu vários artistas e as canções do cantautor e poeta português.
“Cobre-te canalha, na mortalha”, canta-se, a uma só voz. “Hoje o rei vai nu…”
Entretanto, escutamos “Salve-se Quem Puder” e entramos na esfera de alguns grandes clássicos da banda: “Circo de Feras”, “Não Sou o Único” e “À Minha Maneira” são recebidos com o mesmo calor com que abraçamos um velho amigo. Pelo meio, Tim apresenta os seus companheiros de palco, Gui (saxofone), João Cabeleira (guitarra) e Kalú (bateria), sem esquecer Tiago Ferreira, “que deu uma ajuda nas guitarras”.
Depois dos agradecimentos, o encore.
Chega o “Dia de S. Receber”, “o dia que eu mais gosto”, como cantam, em perfeita sintonia, Tim e o seu coro de fiéis seguidores, e seguimos para “A Minha Casinha”, ao ritmo das vozes e palmas da plateia, preparando-nos para descansar, que o dia já vai longo. À nossa espera, junto ao Tejo, que brilha sob a luz da lua, está o “Homem do Leme”, para nos conduzir, uma última vez, através do Cerco.



















