Cinco décadas depois de terem iniciado actividade, os britânicos Iron Maiden embarcaram na Run for Your Lives World Tour, digressão mundial que pretende celebrar os 50 anos de carreira da banda, com um espectáculo muito especial: o conjunto liderado por Steve Harris tocará, exclusivamente, temas dos primeiros álbuns de estúdio, do homónimo Iron Maiden (1980) a Fear of the Dark (1982). Portugal não ficou de fora e aquilo a que se assistiu na noite de ontem, na Meo Arena, foi mais do que um concerto. Uma noite para a eternidade, sendo que a abertura de hostilidades esteve a cargo dos suecos Avatar.
Na tarde de domingo, 6 de Julho, a margem do Tejo, junto ao Parque das Nações, em Lisboa, inundou-se de negro. Um pouco por todo lado, proliferavam as cores de Iron Maiden, banda fundada no dia de Natal de 1975, pelo baixista Steve Harris, e cujo nome saiu diretamente do filme The Man in the Iron Mask, adaptado da obra de Alexandre Dumas. Os fãs portugueses não quiseram faltar à celebração do 50º aniversário dos britânicos e esgotaram os bilhetes disponíveis há vários meses. Agora, a hora do reencontro está próxima e a ansiedade é palpável. Antes, porém, a abertura de hostilidades é da responsabilidade dos suecos Avatar.
Avatar
Caracterizados por um espírito teatral e por uma cuidada produção visual, os suecos Avatar não desiludem, entrando em cena em grande estilo: como se de um presente se tratasse, o vocalista Johannes Eckerström emerge de uma caixa de cartão, transportando um balão.
“Lisbon, Portugal… Are you ready?“, pergunta, antes que soem os acordes iniciais de “Dance Devil Dance”, canção que dá nome ao mais recente trabalho do conjunto originário de Gotemburgo, editado em fevereiro de 2023.
Seguem-se “The Eagle has Landed” e “Captain Goat”, tema que remete para a história e mitologia escandinavas. Pelo meio, o cantor vai bebendo de um jerrican, fazendo pensar que este contém a gasolina necessária para incendiar a plateia.
“You are beautiful! You are majestic, Lisboa!”, declara-se Eckerström, confessando que é bom estar de volta a Portugal. “I can see that Avatar is in your mind.”, observa. O público aplaude, de forma entusiástica, mostrando estar a gostar do que ouve. E do que vê.
“Show me your horns!“, exige a bizarra figura que nos serve de cicerone, durante “In the Airwaves”. Depois, escutamos “Bloody Angel” e “The Dirty I’m Buried In” e voltamos a ouvir a voz sussurrada da excêntrica personagem que lidera Avatar. “We’ve been here before, but I see new faces.”, constata Eckerström, perguntando, de seguida, quantos são aqueles que estão a assistir pela primeira vez a um espectáculo do grupo. Muitos respondem afirmativamente, tal como muitos serão, certamente, os que irão marcar presença no concerto que a banda dará em fevereiro do próximo ano, no Lisboa ao Vivo. Para lá da teatralidade, Avatar mostra saber como seduzir o público nacional, através da sua música.
“We belong together, Portugal!“, diz o vocalista, mostrando devoção àqueles que vão enchendo a Meo Arena.
A performance dos suecos termina com “Smells like a Freak Show” e “Hail the Apocalypse”. Por esta altura, Lisboa já foi conquistada, contemplando a banda com um enorme aplauso, assim que as derradeiras notas ecoam pela sala.
“We love you, Lisboa!“, despede-se Johannes Eckerström. “Have fun with Iron Maiden!“.
Iron Maiden
À hora marcada, as luzes apagam-se e apenas o palco continua iluminado.
Enquanto as colunas cantam “Doctor Doctor”, dos britânicos UFO, o cenário é-nos apresentado. Para além das habituais plataformas que se estendem por todo o comprimento e profundidade do palco, e que servirão de trilho para as personagens incorporadas pelo vocalista Bruce Dickinson, uma enorme tela aguarda para entrar em ação, prometendo-nos uma experiência imersiva.
Quando a música se cala, o ecrã gigante acorda, transportando-nos no espaço e no tempo e conduzindo-nos através das ruas, becos e vielas de East London, região onde, em dezembro de 1975, o baixista Steve Harris fundou Iron Maiden. A viagem é feita ao som do instrumental “The Ides of March”, tema de abertura do álbum Killers, de 1981, que remete para a data em que o imperador Júlio César foi assassinado. Pelo caminho, passamos por vários pontos de referência da história da banda, incluindo a Acacia Avenue, ou o pub The Blind Beggar, sem esquecer o West Ham United, clube que ocupa o coração de Harris.
Depois, irrompem labaredas, por todo o palco, seguimos para Paris e damos de caras com “Murders in the Rue Morgue”, canção inspirada pelo romance editado por Sir Edgar Allan Poe, em 1841. Seguem-se “Wrathchild” e “Killers”, momento em que entra em cena Eddie, mascote de Iron Maiden e figura omnipresente, ao longo das cinco décadas de carreira do conjunto britânico.
“Obrigado, Portugal!“, agradece o vocalista Bruce Dickinson, no final da sequência inicial, integralmente dedicada ao disco Killers. “Boa noite, my friends!“, continua. “We are…”. Antes que pudesse completar a frase, a Meo Arena junta-se, num coro afinado, e grita por Iron Maiden, mostrando que as apresentações são desnecessárias. Afinal, muitos são aqueles que cresceram em conjunto com a banda. Outros há que se cruzaram com a sua obra mais tarde, mas todos sentem fazer parte da mesma família. Olhando em redor, vemos, literalmente, que Iron Maiden é idolatrada dos netos aos avós.
Dickinson prossegue o seu discurso, referindo-se aos 50 anos de carreira e meditando sobre o facto de algumas coisas terem mudado, ao longo dos tempos, aproveitando para apresentar Simon Dawson, na bateria. “He is one of us, now!“, determina. Depois, olhando para a imagem que ilustra a tela, coloca-nos uma questão: “What’s behind the red curtain?”. Antes que pudéssemos responder, a cortina abre e surge “The Phantom of the Opera“, magistral composição escrita para o registo de estreia, o homónimo Iron Maiden, de 1980, e que homenageia o famoso musical de Andrew Lloyd Webber. Da plateia à bancada, o público vai acompanhando a coreografia determinada pelo maestro Bruce Dickinson. Algo pouco condizente com uma ópera, talvez, mas o fantasma é apreciador de Heavy Metal. E nós também.
Entretanto, entramos na era Bruce Dickinson. Se as primeiras músicas haviam sido retiradas da discografia gravada com o malogrado Paul Di’Anno, agora é hora de embarcar em The Number of the Beast, álbum de 1982 e o primeiro a contar com a voz de Dickinson. Um marco incontornável na carreira de Iron Maiden, já que foi a partir daqui que o grupo se consolidou como um dos principais porta-estandarte da New Wave of British Heavy Metal, começando a trilhar um caminho que o coloca, hoje, no pedestal das mais importantes bandas da história da Música, em geral, e do Metal, em particular.
“For the Devil sends the beast with wrath (…) it’s number it’s six hundred and sixty six!”. Uma voz grave, tão arrepiante quanto familiar, ecoa pela sala. Fogo volta a invadir o palco e “The Number of the Beast” é cantada em uníssono. Esta é, aliás, uma constante, ao longo da noite, mostrando a devoção de todos aqueles que enchem o recinto lisboeta. Segue-se “The Clairvoyant”, do disco Seventh Son of a Seventh Son, até que enveredamos pelo Powerslave, registo de 1984. Agora, pirâmides invadem a tela. E uma esfinge, cuja cabeça é a de Eddie, sendo que Bruce Dickinson enverga uma máscara de faraó.
“Scream for me Lisboa!!“, exige Dickinson. O povo cumpre o desejo do líder e acompanha o solo com palmas. Depois, os versos finais são cantados a uma só voz, pelo coro da Meo Arena: “Slaves to the power of death!“.
“2 Minutes to Midnight” é uma referência ao “doomsday clock“, o relógio que assinala a contagem decrescente para uma catástrofe global, tendo em conta as inúmeras guerras que proliferam pelo mundo. Não por acaso, o ecrã gigante é ocupado por Eddie, vestido de soldado, com um cigarro na boca e uma metralhadora nas mãos, sob bandeiras de vários países que, de alguma forma, se encontram envoltos em conflitos. Incansável, Dickinson percorre todos os cantos do palco, apontando para cada um de nós e pedindo que sejamos mais um elemento da banda, cantando, gritando ou batendo palmas, enquanto as guitarras de Dave Murray, Adrian Smith e Janick Gers exalam todo o seu virtuosismo, auxiliados pelo ritmo estonteante do baixo de Steve Harris e da bateria de Simon Dawson. A performance do nosso cicerone tem o condão de nos aproximar do palco, como se estivéssemos numa sala intimista, ao invés de nos encontrarmos no maior salão de festas do país.
“Scream for me, Portugal!“, insiste o vocalista, antes da explosão final.
“This should be a nice bottle of Porto…“, lamenta Bruce Dickinson, enquanto bebe um gole do cantil que traz à cintura. “But this is not Porto, wine or whisky: it’s fucking water!“, confessa. Talvez por isso a sua voz continue a oferecer-nos um timbre perfeito, apesar dos seus 66 anos.
Sem que disso tenhamos dado conta, vestimos a pele de marinheiros e embarcamos num navio, rumo ao fim do mundo e mais além, ao som da épica “Rime of the Ancient Mariner”. A canção é um autêntico romance. Com a ajuda da música que transpira dos instrumentos, da voz que vamos escutando e das imagens que passam pela tela, mergulhamos na história e navegamos por cada um dos terríveis episódios da saga. O final é feliz e justifica o fogo-de-artifício que inunda a Meo Arena, mas quaisquer lições que pudéssemos retirar da epopeia ficam para segundo plano, assim que soam os primeiros acordes de “Run to the Hills”, um dos temas mais acarinhados pelo público.
Na sequência, “Seventh Son of Seventh Son”, faixa-título do álbum de 1988.
“Today is born the seventh one. (…) He has the power to heal, (…) the gift of the second sight. He is the chosen one!“, escutamos. “So it shall be written. So it shall be done!“, gritamos, a uma só voz, como se de uma seita fizéssemos parte.
Ainda estamos em transe, quando entra em cena “The Trooper”, um dos maiores clássicos de Iron Maiden, parte do Piece of Mind, de 1983. Enquanto as cordas das guitarras e do baixo se dispõem, afilados, na frente de palco, Bruce Dickinson, incorporando um soldado britânico, percorre todo o espaço que tem à disposição, empunhando uma bandeira do Reino Unido. Pede que o coro da Meo Arena se junte à banda e aproveita o regresso de Eddie, também ele impecavelmente fardado, para, sob enorme ovação, pegar numa bandeira de Portugal.
Na reta final, ainda há tempo para ouvir a homónima “Iron Maiden”. Antes, porém, um dos momentos mais arrepiantes da noite: “Hallowed be Thy Name”!
Enquanto os sinos dobram, Bruce Dickinson emerge das profundezas, no interior de uma cela. “I’m waiting in my cold cell, when the bell begins to chime…“, canta o homem, no seu cárcere, à espera de morrer. O timbre que emana da sua voz transmite-nos toda a angústia e desespero dos momentos finais. Vemos o cadafalso surgir no ecrã e tochas acenderem por todo o palco. O fim está próximo, mas não ainda…
Depois das habituais despedidas e saída de cena, e com a Meo Arena imersa na escuridão, milhares de luzes se acendem, iluminando o caminho para um encore. A tela acorda do sono, mostrando-nos, agora, imagens da II Guerra Mundial, ilustradas pelo famoso discurso do ex-Primeiro Ministro britânico, Winston Churchill, proferido na Casa dos Comuns, em junho de 1940.
“We shall fight! We shall never surrender!”. As palavras ecoam pela sala, com estrondo, anunciado “Aces High”, tema escrito do ponto de vista de um piloto da Royal Air Force, durante o grande confronto global que marcou o século XX. No ecrã, é Eddie quem conduz os aviões da RAF. Cá em baixo, no palco, envergando o capacete de um piloto, é Bruce Dickinson quem transporta a audiência, através de mais uma viagem pela história.
A noite já vai longa, pelo que não é de espantar que as próximas imagens nos mostrem o nascer da lua, cheia e altiva, sobre um cemitério. É hora de “Fear of the Dark”. Desta vez, Dickinson enverga um sobretudo e uma cartola, ao mesmo tempo que empunha uma lanterna, enfeitada por uma estranha luz verde. Mais que um cantor, o homem é um verdadeiro ator, assumindo cada uma das personagens com mestria.
O epílogo é feito ao som de “Wasted Years”, clássico do álbum Somewhere in Time, de 1986. A derradeira viagem é feita a bordo de uma nave espacial. Banda e público fundem-se num só corpo, renovando os votos de amor eterno.
“Every night we play is the best night of our lives! Thank you Portugal! We will see you again!“, agradece Bruce Dickinson.
Ficamos à espera.
Hallowed be Thy Name!


















