Enquanto um pouco por todo o mundo se comemorava o dia de St. Patricks, neste canto do planeta – mais concretamente, no bar do Teatro da Comuna, em Lisboa – arrancou, na sexta-feira, dia 17 de maio, o Festival de Jazz do Hot Clube de Portugal. Com uma agenda de três dias carregados, até rebentar as costuras, de música e outras atividades, o festival pretende assinalar os 75 anos de existência da instituição.
Curiosamente, o Hot Clube não é único a soprar um número de velas tão bonito e redondo em 2023: também os Lokomotiv, formação à qual coube a honra de dar o pontapé de saída do festival, terão de soprar a mítica quantia de 25 velas. Para os aficionados do futebol, o nome deste trio tem reminiscências de clubes de futebol de países de leste. Um deles, o célebre Lokomotiv de Moscovo, que inicialmente se chamava Clube da Revolução de Outubro, foi fundado pelos trabalhadores da ferrovia da União Soviética e ainda hoje é patrocinado pela empresa ferroviária estatal russa. E, como se as coincidências em matéria de idade não fossem ainda suficientes, resta acrescentar que este clube moscovita foi fundado faz este ano, precisa e curiosamente, um século.
Ponhamos as curiosidades de lado e regressemos novamente ao Teatro da Comuna, neste momento em que o mentor do projecto, Carlos Barretto, entra em palco e pega no contrabaixo, que jazia no chão à espera do início dos trabalhos. A acompanhar Barretto vêm os seus compagnons de route de longa data: o guitarrista Mário Delgado e o baterista José Salgueiro. Sem que tivéssemos dado por isso, somos vítimas de uma espécie de metamorfose: subitamente, não somos mais os espectadores que, ainda há pouco, entraram nesta sala, se sentaram à mesa ou ficaram de pé, de copo na mão, aguardando; somos agora passageiros, num apeadeiro, à espera de embarcar.
À hora calendarizada, as portas abrem-se e, já no interior das carruagens, é como se a viagem se iniciasse ao som da primeira nota. É uma longa nota de contrabaixo tocado com arco, ainda mais prolongada pela reverberação e pelo delay. Segue-se um riff exótico, distante, que convida a melodia melancólica da guitarra e as escovas que acariciam a bateria. Trata-se do tema “Lugar Sem Lugar”, a primeira faixa de Gnosis, o último álbum da banda, edição de autor gravada há 5 anos e que interrompeu um hiato de 8 anos face ao anterior álbum, “Labirintos”, de 2010 (é-nos, no entanto, feita a jura, a pés juntos e sem fazer figas, que o próximo álbum de originais, o sétimo, estará já na calha para sair ainda este ano).
De repente, a música sobe súbita e inesperadamente de intensidade, como se, qual oitavo passageiro do filme Alien, das entranhas da primeira metade do tema irrompesse outro tema distinto, senão mesmo extraterrestre. A guitarra de Delgado dispara agora os sons distorcidos, incisivos e acutilantes que nos vão acompanhar por grande parte da noite. A intensidade mantém-se daqui para a frente, como se o comboio tivesse atingido a sua velocidade cruzeiro e nela se mantivesse até ao destino. Sentimo-la quando atravessamos a “Porta Líquida”, com uma melodia de dinâmica e acentuação fluída, que se agarra viscosamente aos ouvidos, e quando é dado espaço ao solo de Salgueiro. Por vezes, essa mesma intensidade é crescente e proibitiva ao ponto de parecer que a composição vai descarrilar de forma aparatosa, não fossem estes três pares de mãos a conduzir os instrumentos com mestria, quais guarda-freios que zelam pela segurança. Uma coisa é certa: nem todos os carris têm bitola para estes meninos.
Chegados ao final da primeira parte do set, de microfone em riste, Barretto explica-nos que o tema seguinte, “Corrida lenta”, não tem nada escrito. Confessa-nos que, por vezes, corre bem e, por outras, nem por isso – e, acreditem, estas últimas palavras são um eufemismo; Barretto usou outra terminologia para transmitir a ideia, que não vamos aqui reproduzir, e que teve o condão de arrancar uma gargalhada de uma vasta porção do público. Visto por este prisma, o risco incorrido com a execução deste “Corrida lenta” é um atestado àquilo que parece ser o leitmotiv destes Lokomotiv: a irreverência da banda, a coragem para testar e experimentar, para trilhar caminhos por desbravar, mares nunca dantes navegados, sempre de forma descomplexada. É também uma manifestação de quão bem a máquina está oleada, da comunicação quase telepática construída, ao longo dos anos e das décadas, entre músicos que se conhecem de ginjeira.
Aqui chegados, não sabemos se esta locomotiva é eléctrica (embora mande muita faísca) se, ao invés, recorre a diesel ou ainda, à moda antiga, queima carvão e deixa um rasto de fumo espesso no ar. Mas lá que carbura, disso não temos qualquer dúvida. Aliás, em tempos de inúmeras greves dos transportes públicos, com particular ênfase no transporte ferroviário, é bom saber que ainda há comboios com os quais se pode contar: que não só saem da estação e iniciam o trajecto à hora agendada, como nos levam aos locais onde precisamos de ir. Por vezes, sentimo-nos num Intercidades ou no Alfa Pendular ou, para recorrer a exemplos internacionais, num TGV (e, sem querer, estamos a fazer uma referência a outro projecto em que Mário Delgado participa; agora que pensamos nisso, o guitarrista começar a parecer-nos um entusiasta dos pouca-terra) ou num shinkansen, o comboio-bala nipónico, engolindo suavemente, a grande velocidade os quilómetros; outras tantas, é como se estivéssemos num comboio suburbano (por exemplo, na Linha de Cascais, a passar por Paço de Arcos ou, na Linha de Sintra, a chegar a Queluz-Massamá) fartamente lotado, como uma lata de sardinhas; ou, mesmo, num regional, daqueles que lentamente, muito lentamente, progridem de estação em estação. Seja qual como for, uma coisa é certa: ficamos a aguardar, ainda este ano, esse tal novo disco de originais – o prometido é devido! – ansiosos por voltar a viajar com os Lokomotiv.




















