Quase duas décadas se passaram, desde que Linda Martini nos enfeitiçou com os seus Olhos de Mongol, o primeiro momento de sedução lançado sobre os incautos lusitanos que, ao contrário de Ulisses, quando encontrou Calipso e escutou o canto das sereias, não souberam resistir, sucumbindo aos encantos daquela que se tornaria numa das mais criativas e prolíficas bandas do rock português.
Passa-Montanhas é o sétimo longa-duração da carreira do conjunto que nasceu na Linha de Sintra, nos primeiros anos do novo milénio, e foi o mote para uma série de concertos de apresentação, que pretende dar a conhecer o novo trabalho de Linda Martini, mas também percorrer alguns dos caminhos outrora palmilhados pela banda. O Lisboa ao Vivo não faltou à chamada, engalanando-se, ao melhor estilo, para receber a sua musa.
A noite começa com “Assombro”, tal a elegância com que Linda Martini sobe ao palco e fita, timidamente, a legião de admiradores que a aguarda. Depois, como que por magia, transforma-se em “Uma Banda”. E esta está para durar. Foi em 2003 que André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais, Pedro Geraldes e Sérgio Lemos se uniram, para dar corpo e alma a esta personagem. Pelo caminho ficariam Pedro e Sérgio, mas Rui Carvalho, o Filho da Mãe, juntar-se-ia à formação, em 2022, trazendo, consigo, renovada energia. Um sopro de vida que, acreditamos, será capaz de nos oferecer mais 20 anos de canções.
Os dois temas que abrem o concerto são, também, a porta de entrada para o Passa-Montanhas, registo que Linda Martini editou no passado dia 24 de janeiro. Mas o serão também é ilustrado por recortes do passado, pelo que recuamos até ao álbum Êrror, de 2022, e escutamos “E Não Sobrou Ninguém”, música que não poderia ser mais atual. “Ai, Que Te Roubam o Trabalho”, canta-se. “A Mulher, o Salário, a Bandeira, o País (…)”. Desde que nasceu, Linda Martini não tem medo de dizer o que pensa e deixar clara a sua opinião, política ou social. Sem filtro.
Entretanto, Cláudia Guerreiro olha para a plateia e confessa que é como se estivesse na sua sala, em casa, a tocar para os amigos. É assim que nos sentimos. Segue-se “Boca de Sal”, canção de 2018, e mais duas músicas do Passa-Montanhas, “Corações Rápidos” e “Meu Deus”. Agora, é a vez de Hélio Morais se dirigir à plateia, dizendo que, há dois anos, por alturas do vigésimo aniversário, não sabiam o que estaria para vir e que se sente muito feliz por estar aqui, com os seus companheiros.
Continuamos com o Passa-Montanhas e cruzamo-nos com o “Cão Tinhoso”, antes de ouvirmos que “A Cantiga É” [uma arma]. Depois, viajamos até Turbo Lento, disco de 2013, e chegamos ao “Panteão”, embora Linda Martini prefira “dar os ossos a um cão”. Ao Tinhoso, talvez. Seja como for, a audiência respeita a vontade da banda e acompanha a reivindicação. Por esta altura, Hélio Morais dirige-se aos seguranças e diz que o seu público “é tranquilo”. Que podem estar descansados. Não haverá tumulto. Quando muito, assistimos a uma revolução pacífica, quando as notas invadem a atmosfera e o público imerge na música, deixando-se embalar nessa onda, ora furiosa, ora melancólica. É disto que é feito o post-rock que emana dos instrumentos.
Continuamos ao som de “Eu Às Vezes Perco-me”, mais um tema novo, invadimos a Casa Ocupada, registo de 2010, e ouvimos o coro da “Juventude Sónica”, sob uma tempestade de aplausos: “não temos aulas amanhã!”. Felizmente, é fim-de-semana e podemos ficar mais um pouco, mesmo que a [puta da] “Gravidade” faça com “que me caiam todas as manhãs ao chão”.
Antes que soem os primeiros acordes de “Faz-se de Luz”, André Henriques explica-nos o duplo sentido do título e da própria letra. Mais uma vez, Linda Martini não perde a oportunidade de vincar a sua posição e criticar o “facho de luz”, aquele que “tudo apaga, diz tudo e o seu contrário”.
“A próxima chama-se Pé de Guerra!”, anuncia Cláudia Guerreiro. “Fala sobre escutar…”, continua. Na verdade, é esta a mensagem que procuram passar com o mais recente trabalho. Saber escutar. Conversar melhor. Uma filosofia que choca com o mundo atual, mas que merece ser defendida. “Temos mais duas”, avisa Cláudia. E ficamos com “Putos Bons” a ecoar pela sala, antes de nos deixarmos envolver pelo transe provocado por “A Mão Como a Maré”, música que encerra o novo disco e que nos faz despir o Passa-Montanhas. Afinal, faz calor desde o primeiro acorde.
A banda deixa o palco, mas a plateia clama pela Linda Martini, implorando o seu regresso. Vontade satisfeita e a reta final é feita pelos caminhos do passado, mais ou menos recente.
A sequência começa com “Super Fixe”. Embora o sentido da música seja oposto, o título é um adjetivo perfeito, em forma de eufemismo, para a noite que estamos a viver. Segue-se “Dá-me a Tua Melhor Faca” [para cortarmos isto em dois], mas o que se observa é que banda e público são um só corpo. Inseparável. Inquebrantável. E o aumento da frequência de crowdsurfers sugere que o epílogo seja feito com “Cem Metros Sereia”.
Quando os instrumentos se calam, a plateia continua, enquanto André, Cláudia, Hélio e Rui se envolvem num abraço sentido. Desce o pano e nós não cabemos em nós, como os “Putos Bons”, seduzidos pelo canto da Linda Martini.



















