Sérgio Godinho Serviu-nos A Liberdade Com Vinho Da Casa

Reportagem de Diana Silva (fotografia) e João Barroso (texto)

Sérgio Godinho
Sérgio Godinho

20 de março, quarta-feira. O Coliseu dos Recreios, em Lisboa, encheu, para escutar Sérgio Godinho e a sua Liberdade 25, um espetáculo que pretende celebrar os 50 anos da Revolução dos Cravos, mas também as mais de cinco décadas de carreira de uma das mais importantes personagens da história da música portuguesa.

No palco, sob um letreiro vermelho, com o nome “Sérgio”, cinco faixas verticais mostravam cinco retratos, um por cada uma dessas décadas de canções. Mais abaixo, não eram “cordas e harpas, timbales e tambores”, como escreveu Bernardo Soares, mas os instrumentos e microfones esperavam pelos seus mestres, Sérgio Godinho e Os Assessores, para nos desassossegar. Algures na primeira fila, alguém segurava um molho de cravos.

Era 21h41, quando as luzes se apagaram.

Sérgio quis “entrar em grande”, como ‘O Rei do Zum Zum’, o primeiro tema que se fez ouvir numa noite fria que, porém, rapidamente se tornaria quente. Seguir-se-ia ‘Já joguei ao Boxe, Já toquei Bateria’, uma primeira passagem pelo álbum Canto da Boca, de 1981.

Pausa para respirar.

Sérgio Godinho saúda o seu público e refere-se ao facto de estar “De Volta ao Coliseu”, precisamente o título do DVD que gravou na mítica sala lisboeta, em 2003. Este novo regresso, diz, “será para cantar músicas mais antigas ou mais recentes e para celebrar os 50 anos do 25 de Abril”. Estava dado o mote para a canção que se faria ouvir de seguida: ‘Foi aos 25 dias de Abril’. Composta por Jorge Constante Pereira e com letra de Sérgio Godinho, a música faz parte de um CD infantil, de cariz educativo, editado por altura do 25º aniversário da Revolução.

Depois, imersão no disco De Pequenino se torce o Destino, de 1976, para ouvir ‘Foi a trabalhar’. Afinal, canta, “é a trabalhar que a gente paga o jantar, mas foi a trabalhar que a gente fez a faca para o cortar”. Na sequência, escuta-se ‘Grão da mesma Mó’ e ‘Cuidado com as Imitações’, a história de Casimiro Baltazar da Conceição, “mais famoso que no Vaticano o Papa”.

Nenhuma letra foi escrita ao acaso. Sérgio é um contador de histórias reais. Canta-se a Liberdade e as lutas de ontem e de hoje. É o caso de ‘Maré Alta’, parte do registo de estreia, Os Sobreviventes, de 1971, e a sua canção com a letra mais curta. São apenas quatro frases, mas o suficiente para que se perceba a mensagem. “A liberdade está a passar por aqui”.

“Vou sentar-me, para não se cansarem”, anuncia, enquanto apresenta ‘Mariana Pais, 21 anos’, tema composto pelo seu “mais antigo companheiro”, José Mário Branco, ele que, apesar de já ter ocupado o seu lugar na galeria dos imortais, voltaria a descer à Terra, quando soou ‘O Charlatão’.

Segue-se uma incursão pelo disco Lupa, de 2000. ‘Na Prisão’ apresenta vinhetas e impressões do tempo que Sérgio Godinho passou encarcerado, no Brasil. “Houve gente que esteve presa mais tempo do que eu…”, medita. ‘Dancemos no Mundo’ é dedicada a todos os refugiados. Pelo meio, ‘Domingo no Mundo’, do álbum com o mesmo nome. “Sempre quis falar do trabalho infantil”, explica. “Em todo o mundo, há crianças a trabalhar”…

Talvez ainda fosse cedo, como referiu Sérgio Godinho, mas era hora de apresentar Os Assessores, o grupo que, há muito, o acompanha. João CardosoMiguel FevereiroNuno Espírito SantoNuno RafaelSara Côrte-Real Sérgio Nascimento eram os músicos que davam cor e melodia às palavras que dançavam sobre o Coliseu de Lisboa, algo que, inevitavelmente, teria que redundar em ‘Espectáculo’.

“Vamos aconchegar-nos”, sugeriu Sérgio aos seus Assessores, mas também a todos nós. Alexandre O’Neill, grande poeta do movimento surrealista português e cuja obra deixou marca indelével na mente criativa de Sérgio Godinho, era chamado à colação: ‘O’Neill (Alguns Poemas com Endereço)’, faz parte do disco Pré-Histórias, de 1972, e inclui três micro-poemas do escritor. Mas as homenagens não se ficariam por aqui…

Ouviram-se ‘Quatro Quadras Soltas’ e uma enorme ovação, na altura em que Sérgio cantou “estive a beber um copito com uma quadra do Zeca [Afonso]”, mas também não faltou ‘Ora vejam lá’, do Conjunto António Mafra, tema que contou com a colaboração, a capella, do grupo Canto Nono e que fala do protesto dos trabalhadores do comércio contra a “semana inglesa” e a vontade de não trabalhar ao sábado.

Os elementos do Canto Nono mantiveram-se em palco, por algum tempo, oferecendo as suas vozes a versões de ‘Etelvina’ e ‘Que Força é Essa’, sendo que esta última foi responsável por um dos momentos mais celebrados da noite, mesmo antes da entrada em cena do já referido ‘Charlatão’.

Chega o ‘Coro das Velhas’, as vetustas idosas do Concelho de Caminha, e entramos no ‘Salão de Festas’ (registo de 1984), juntamente com Adozinda, Felisbela, Felismina, Adelaide, Amelinha, Maria Berta e Zulmirinha, sabendo que, aos 84 (pelo menos uma delas), lá vão andando, “com a cabeça entre as orelhas”.

Por esta altura, o Canto Nono abandona o palco e Sérgio Godinho senta-se, novamente, à luz do candeeiro. Abre o jornal e “lê-nos” ‘A Grande Sale da Caridade’, um novo tema, enquanto as imagens desse artigo fictício vão passando pela tela. De seguida, pede-nos que imaginemos um Presidente que, inopinadamente, entra em casa de um cidadão incauto. Este, recebe-o com gentileza: ‘Benvindo Sr. Presidente’!

O público acompanha cada música com o instrumento que tem mais à mão. Palmas.

Enquanto observamos aquela figura de ar paternal, que nos vai contando histórias e falando da vida, que nos vai lendo notícias que, não sendo reais, podiam ser verdadeiras, surge Cátia Mazari Oliveira. Soa a ‘Balada da Rita’, na voz d’A Garota Não. Para ela, é a estreia no Coliseu, mas não para Sérgio, para quem esta é “a volta, da volta, da volta” e que retribui com ‘Dilúvio’, canção que Cátia editou em 2022.

Entre estes dois momentos, ‘Diga 33’, música de A Garota Não, cuja letra é formada por 33 títulos de canções de Sérgio Godinho, a quem dedicou o tema, justificando uma das grandes ovações da noite.

Entretanto, ‘Com um Brilhozinho nos Olhos’ e cantando, em uníssono, “hoje soube-me a tanto, portanto, hoje soube-me a pouco”, chegámos ao fim. Mas haveria espaço para um epílogo…

Embalados por um enorme aplauso, Sérgio Godinho e Os Assessores regressam ao palco, brindando-nos com uma fantástica versão de ‘Os Vampiros’. “Viva o Zeca!”, ouve-se. É a hora da ‘Liberdade’, tema editado em Janeiro de 1974 e que, para além da exigência que clamava, funcionou como uma espécie de premonição para o que sucederia, meses depois.

Na plateia e nas galerias, até mesmo nos camarotes, o público é povo e está de pé, cantando e batendo com os pés. Abate-se um novo terramoto sobre Lisboa. E há tempo para novo encore.

‘O Primeiro Dia’ é o ponto final, mas brinda-se ao Sérgio, à Liberdade e “aos amores, com o vinho da casa”.

Numa noite em que se celebraram os 50 anos da Revolução dos Cravos e as mais de cinco décadas de carreira de Sérgio Godinho, soube-nos a tanto. E a pouco.

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