O segundo dia do Sol da Caparica trouxe artistas que provaram que a música vive mais de transformação do que de repetição. Um dia em que tradição e futuro trocaram lugares no mesmo palco, como se o festival fosse uma sala de espelhos onde cada artista via no reflexo uma versão inesperada de si próprio, ou do género musical que representa. Do fado mutante de Bia Caboz ao R&B destilado de Richie Campbell, passando pelo romantismo angolano de Matias Damásio, o pagode do Menos é Mais e a chama cigana de Nininho Vaz Maia, a Caparica foi ontem o laboratório de uma língua comum: a música em português, sempre à beira de mudar de pele.
Bia Caboz: o Fado Que se Despede do Xaile
Ao cair da tarde, Bia Caboz abriu o dia com a ousadia de quem sabe que está a mudar as regras do jogo. Sem o cenário solene do fado, sem silêncio imaculado, trouxe guitarras portuguesas a dialogar com sintetizadores e batidas eletrónicas. Com um espetáculo meticulosamente cuidado, no aspeto visual o, foi desafiando o público: “Será que toda a gente é livre pra sentir saudade?”
Cantou Amália, sim, mas cantou-a como quem abre uma porta: “Estranha Forma de Vida” com bateria e teclas, sem medo de trair a pureza para ganhar um outro tipo de verdade. Passou por um fado-samba (“Vai Vaguear”), deixou-se arrastar pelo peso dos beats em “Sentir Saudade” — a parceria com o DJ Kura que encerrou o concerto como se fosse hino de pista.
No final, a sensação era clara: se algum dia o fado chegar a discotecas, terá a voz de Bia Caboz como guia.
Matias Damásio: a Emoção Como Festa
Com o sol a descer lentamente sobre a Caparica, Matias Damásio fez-se rei da festa sem precisar de insígnias. A sua voz e o seu tom brincalhão conquistou sorrisos. Entre kizomba, pop e baladas, trouxe a Caparica para um estado de celebração.
Foi um desfile de canções maiores: “Loucos” fez o público inteiro cantar em coro, “Como Antes” arrancou sorrisos nostálgicos, e nas colaborações com mulheres, Vanesa Martín em “Porque Queramos Vernos”, Mickael Carreira em “Pelos Cantos do Mundo”, Damásio mostrou-se ainda mais emocional.
O momento mágico coincidiu com o pôr do sol: “Vocês são os Maiores”, gritou, antes de dar mais uma volta a um refrão de kizomba como quem se recusa a sair sem prolongar a festa. O concerto terminou com a certeza de que, naquela hora dourada, ele foi dono e senhor da Caparica.
Menos é Mais: o Brasil em Estado de Pagode
À noite, a alegria brasileira entrou em cena com o grupo Menos é Mais, fenómeno do pagode de Brasília. A sua fórmula é simples: transformar cada música num churrasco partilhado, um pretexto para dançar colado, abraçar amigos, cantar medleys intermináveis. E foi isso mesmo que aconteceu neste segundo dia de festival O Sol da Caparica, com o público brasileiro em clara maioria, no recinto.
Da explosiva “Lapada Dela” ao encadeado irresistível de “Até Que Durou / Tu Mandas No Meu Coração / Adorei / Supera”, a plateia tornou-se extensão da banda. O fecho com “País Tropical” foi um abraço coletivo, uma ponte entre Brasil e Portugal que só precisava de cavaquinho, pandeiro e sorrisos para funcionar.
O pagode, que nasceu periférico, provou-se universal.
Nininho Vaz Maia: Autenticidade Descalça
Se o festival tem vocação de espelho, Nininho Vaz Maia apareceu para refletir a força da sua história pessoal. Entrou em palco descalço, de cetim, e atirou-se sem rede a um repertório que já não pertence apenas a si, mas ao povo que se revê nele.
De “Bebé” a “Vive o Dia”, de “Hoje Estou Chateado” a “Teus Beijos”, foi misturando flamenco-pop com pop cigano, improvisos de “Malhão” e até “A Mi Manera”.
A multidão respondeu como quem sabe que a música é maior que qualquer controvérsia. Nininho projetou alegria, ferida e redenção. Um artista em carne viva que canta como quem respira. E envolve todos com essa energia.
Richie Campbell: a Noite em R&B
Já madrugada adentro, Richie Campbell assumiu o lugar de anfitrião maior. A sua evolução, do reggae ao R&B e ao dancehall, é hoje um reflexo da própria Lisboa cosmopolita. “Stress”, “Midnight in Lisbon” e o recente “Insomnia” desenharam uma narrativa de noites sem sono e amores líquidos.
Convidou Van Zee para “Even”, recuperou êxitos de várias fases (“That’s How We Roll”, “Best Friend”), e deixou no ar o que já parece inevitável: em Portugal, Richie é pioneiro da independência artística, mas também um entertainer completo, que domina grandes palcos sem nunca perder a autenticidade.
No final do segundo dia, o fio condutor era evidente: cada artista trouxe consigo um espelho onde se refletia uma tradição reinventada. O fado de Bia Caboz, a balada angolana de Damásio, o pagode de Brasília, o flamenco cigano de Nininho e o R&B lisboeta de Richie Campbell.
O Sol da Caparica, mais uma vez esgotado, de acordo com a organização, foi ontem um lugar onde a língua portuguesa dançou consigo própria. E mostrou que continua em mutação, vibrante, impossível de fixar numa só forma.
O festival, neste terceiro dia, volta a abrir portas às 16h00, com música de recepção pela Almada Street Band, presente todos os dias na abertura.
Programa de 16 de Agosto
Palco Bandida:
19h15 – Rich e Mendes
20h45 – Soraia Ramos
22h15 – Lon3r Johny
00h00 – Da Weasel
Palco Bandida
18h00 – DJ Francisco Cunha
20h00 – Miguel Luz
21h30 – Mundo Segundo
23h30 – I Love Baile Funk
Palco Digital / Anfiteatro
17h00 – Cubinho




















