Tim Cantou-nos Histórias No São Jorge

Por Diana Silva (fotografia) e João Barroso (texto)

Tim - Canta-me Histórias
Tim - Canta-me Histórias

Caminhávamos pela Avenida da Liberdade, sob a “chuva dissolvente”, quando nos deparámos com o Cinema São Jorge. Um abrigo, no coração de Lisboa. Em cartaz, António Manuel Lopes dos Santos, o “Tim dos Xutos”, prometia responder ao pedido “Canta-me Histórias”. 

Entrámos. No palco da Sala 2, descansavam uma viola, um baixo e uma guitarra elétrica. Ao lado, uma cadeira e uma mesa, sobre a qual repousava um gravador de bobina, que ia exalando trechos de músicas de Xutos & Pontapés. Sentámo-nos, preparando-nos para receber, de braços abertos, as histórias que nos quisessem contar, fossem estas cantadas ou faladas…

“Boa noite!”, cumprimenta Tim, quando sobe ao palco. Senta-se na cadeira e pega na viola, enquanto se movimenta, desconfortavelmente. “Há qualquer coisa que não está bem…”, reflecte. “Ah! São as chaves do carro!”, continua, perante as gargalhadas da plateia. “Acontece…”.
 
“A Estrada” é o primeiro capítulo do romance que viveremos ao longo das próximas horas. Serve de introdução e narra o momento em que o nosso anfitrião fez a audição que o conduziria à banda a que dedicaria toda a sua carreira, os Xutos & Pontapés. “O mês seria dezembro”, escutamos. “Lá estava um de galochas (…) e vinha dos Olivais. O outro eu já conhecia (…) foi um cantor arrojado. E o terceiro chegou tarde (…) tinha a vespa avariada.”. Canta-se sobre Zé PedroZé Leonel e Kalú. “E a banda não parou mais de tocar. (…) Tocando aqui e ali, até que, num belo dia, entraram o João [Cabeleira] e o Gui.”…
“Vamos tentar aquecer mais um bocadinho.”, sugere Tim, antes de nos oferecer “O Que Foi Não Volta a Ser”, cujo título poderia ter sido criado por Monsieur Jacques de La Palice. É um facto, “mesmo que muito se queira…e querer muito é poder!”, mas nem sempre nos lembramos disso.
 
“Obrigado por terem vindo!”, agradece Tim. De seguida, fala-nos do seu livro, Tim – Milhares de Palavras, que inclui as letras que criou, ao longo dos anos. “Escrevê-lo, fez-me recordar histórias. Uma delas, a de como aprendi a tocar.”, conta. “Tinha 12 ou 13 anos. Os meus pais foram a Espanha e, em vez de caramelos, trouxeram-me uma viola!”. No Corpo Nacional de Escutas, que frequentou, “havia malta que tocava” e que lhe ensinou os primeiros acordes. Em casa, tinha um gira-discos de 45 rpm, o que lhe permitia aprimorar a técnica, escutando os álbuns, ao mesmo tempo que aprendia a cantar, olhando para as letras. Atuava perante os amigos, na escola ou nas visitas a Sintra.
Segue-se “Pedra Filosofal”, poema de António Gedeão, musicado por Manuel Freire, em 1970. O público canta, timidamente. Porém, incentivadas por Tim, as vozes vão, paulatinamente, aumentando de volume.
 
“Depois do liceu, ali por 1977/78, já tocava baixo.”, conta-nos Tim. “Ou, pelo menos, assim pensava eu…”, graceja. Depois, fala-nos da audição com Zé Leonel e do primeiro ensaio daquilo que viria a ser Xutos & Pontapés, já com Kalú e Zé Pedro na formação. “Ao contrário de outros grupos, por onde passei, não queríamos tocar as músicas dos outros.”, explica. “Mas, para isso, teríamos que compor as nossas canções.”, continua. “Comecei por tentar arranjar uns refrões e tal… Vou tentar uma dessas. Do princípio. Algo que escrevi, um dia, e que foi florescendo.”.
 
“Conta-me Histórias”. Afinal, é para isso que aqui estamos.
“Alguns temas surgem instantaneamente. Outros, demoram tempo até crescer. Alguém costumava dizer ao Zé Pedro que o conhecia há anões. Esta música andou anões na gaveta!”, brinca Tim, antes de se entregar a “Gritos Mudos”, tema que, tal como o anterior, faz parte do álbum Cerco, de 1985, o segundo de Xutos & Pontapés e aquele que terá sido o primeiro grande passo do grupo.
 
Por esta altura, já a audiência perdeu a vergonha, não se inibindo de cantar cada uma das palavras que enfeitam as melodias. “Obrigado!”, agradece Tim. “Já vem um pouquinho mais de som, daí!”, observa.
 
As histórias continuam…
 
“Nos camarins, acontecem as coisas mais parvas! O João Gil veio falar comigo, depois de um concerto, e perguntou se eu era alentejano.”, recorda Tim, nado em Ferreira do Alentejo, antes de, ainda novo, mudar para Almada. Gil, “alentejano da Covilhã”, falou-lhe de um projeto que estava a desenvolver com Vitorino e João Monge e no qual estariam envolvidos, também, Jorge Palma, “alentejano das Avenidas Novas”, e Rui Veloso, outro “alentejano de gema”.
 
Mais tarde, no estúdio de Rui Veloso, enquanto entretiam o estômago com as empadas trazidas por Vitorino, os músicos haveriam de descobrir a nascente de Rio Grande.
 
Ouvimos “A Fisga” e “Postal dos Correios”, dois dos temas que saíram daquela simbiose entre “gajos com carreiras consistentes que deixaram os egos de lado, para, de forma orgânica, criar algo maior que a soma das partes”, como explica Tim. Vendo que o público já perdeu a vergonha, o cantor vai servindo de maestro, conduzindo o coro do São Jorge: “Agora em alentejano, devagarinho!”, pede, de forma imperativa.
 
“Gostava de cantar este álbum do início ao fim, com eles…”, confessa Tim. “O expresso parava mais em Cacilhas, mas pronto…”.
 
“Há coisas que não se explicam, tal como entrar para os Xutos e Rio Grande.”. Depois, escutamos como surgiu a Resistência. No início dos anos 90, Tim foi chamado para cantar naquilo que seria uma concentração sindical, juntamente com Miguel Ângelo e Fernando Cunha, elementos de Delfins, e Pedro Ayres Magalhães, de Heróis do Mar e Madredeus, o mentor da ideia. Esta foi a primeira semente do supergrupo português.
 
“Passado uns tempos, telefonaram-me. Na altura, o telefone [fixo] era algo muito importante!”, explica Tim, para quem não estivesse a par. Depois, faz um parêntesis para falar do “telefone branco” que havia em sua casa e através do qual negociou os primeiros contratos de Xutos & Pontapés: “Eu, com grande lata, pedia 20 contos! Depois, passei a tarefa ao Kalú, que eu não tinha jeito para aquilo.”. Voltando a Resistência, recorda que lhe ligaram para gravar as canções em estúdio. Aceitou, mas com a condição de poder tocar, para além de cantar. “Não sabia onde colocar as mãos!”, confessa. O estúdio onde gravaram o álbum de estreia da banda ficaria situado entre o Largo do Leão e a Praça do Chile, em Lisboa. Fizeram-no ao longo de duas semanas, de segunda a sexta, entre as 19h00 e as 7h00. “Possivelmente, era mais barato! E acho que foi numa dessas madrugadas, ao regressar a casa, que escrevi a “Chuva Dissolvente” …”.
 
Segundo Tim, o nome Resistência remete para um dos direitos inscritos na Constituição. “Vivíamos numa época em que a música inglesa tinha demasiada implantação na rádio”. Já o título do disco, Palavras ao Vento, foi escolhido porque queriam realçar as letras, independentemente do estilo das bandas que haviam escrito os originais. O primeiro registo foi um enorme sucesso, pelo que “o segundo álbum já foi feito com calma e com mais dinheiro, nos estúdios da Valentim de Carvalho, incluindo temas de outros grupos e alguns originais”, conta-nos. Por essa altura, havia ocorrido o massacre de Santa Cruz, em Timor, e a banda compôs uma canção que falava do sofrimento do povo timorense. “Gastei 3 carteiras de fósforos para gravar “Timor”. Usava o cartão como palheta.”, relembra Tim. “Creio que a música é do Pedro Ayres Magalhães. O Olavo Bilac e o Miguel Ângelo fizeram os coros. A propósito, parabéns ao Miguel, que faz anos!”.
 
Voltando a vestir a pele de maestro, Tim ensaia o público, ensinando a forma correta de acompanhar o tema, com palmas. Os primeiros acordes não saem a preceito. O São Jorge ri, mas o cantor não se deixa ficar: “No norte, cantam melhor que aqui!”, graceja. A performance da audiência não é perfeita, mas vai melhorando. No final, canta-se a capella, perante o olhar embevecido do anfitrião.
 
“A próxima música foi tocada no Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Gostei e incluí-a no Mano a Mano [segundo álbum da Resistência].”, conta-nos Tim. Fala-se de “A Noite”, tema com que os Sitiados, de João Aguardela, conquistaram o 2º lugar, no referido certame. Não sabemos o que passaria pela cabeça dos jurados, naquele dia, em 1988, mas, hoje, é incompreensível a decisão. “A Noite”, cantada em uníssono, é um dos momentos mais belos do serão. Arrepiante.
 
Chega 2020, ano do 60º aniversário de António Manuel Lopes dos Santos, o Tim, de Ferreira do Alentejo, altura em que foi editado 20-20-20, álbum que contou com as participações de “Moz Carrapa, da Ala dos Namorados, e mais uns quantos”. “Ia fazer 60 anos e decidi chamar os putos, já que ambos se tornaram músicos”, disse, referindo-se aos filhos, Vicente e Sebastião. “Fiz uma música. Faltava a história. Decidi falar de um mocho que havia lá, perto de casa. Alguém sabe o que é um mocho? No Alentejo, é um banco pequeno, com 3 pernas…”. Depois, desafia a plateia a imitar a ave. “Quando chegar a altura, façam favor!”, convida Tim. E ficamos com “O Mocho”. Na verdade, são vários os mochos que se escutam, um pouco por toda a sala. Provavelmente, porque queriam “amor e uma mocha para amar”.
 
“Tudo ok? Ninguém tem que tirar o carro do parque?”, pergunta Tim, explicando, de seguida, que, no Porto, esticou-se um pouco no tempo e houve quem saísse para tirar o carro, que o parque fechava à meia-noite.
 
Entretanto, conta que aprendeu a tocar baixo e guitarra ouvindo as colectâneas azul e vermelha, dos Beatles, que o pai dera à irmã. “Guitarristas há muitos e acabei por me tornar baixista por haver menos concorrência. Assim, tinha lugar certo nos conjuntos!”, assume, comparando-se “ao gordo, que era dono da bola”.
 
“Não tinha um baixo, mas lá ia arranjando uns emprestados, para tocar.”, continua. Depois, fala da saída de Zé Leonel, o que o levou a assumir a pele de vocalista, e regressa ao Cerco, primeiro disco em que participaram João Cabeleira e Gui. Embarcamos em “Barcos Gregos” e seguimos na companhia do “Homem do Leme”.
 
“Pronto… Deixemos o baixo.” Pega na guitarra elétrica. “Foi com esta que fiz a audição com o Zé Leonel”. Tim conta que, um dia, o pai foi à “meca das guitarras”, em Lisboa, em busca de um baixo para o filho, mas o dono ter-lhe-á dito que tal instrumento iria “rebentar com as colunas da aparelhagem”. “Como não podia comprar uma guitarra, o meu pai olhou para os modelos e fez uma. Tinha jeito.”, recorda Tim. “Foi assim que recebi um baixo, que não era um baixo! Os botões são da loja de eletricidade.”, continua. “Tem quatro sons. Um deles, nenhuma outra tem, porque o meu pai enganou-se nos fios!”, escutamos. “Ela é muito suscetível.”, confessa Tim, enquanto afina a sua companheira de longa data, para tocar dois temas do álbum 88, “À Minha Maneira” e “A Minha Casinha”, sendo que esta última foi cantada originalmente por Milú, em 1943.
 
É tempo de nos debruçarmos sobre o livro Tim – Milhares de Palavras, a sua colecção de letras e memórias. “Vou lendo e lembrando porque escrevi. Nem tudo é magia, faróis e praias. Posso ter escrito nos semáforos de Arroios, ou ter sido picado. Podia estar a chover. As letras não se explicam.”, diz, recordando a gravação de Dados Viciados, em Espinho, local em que o frio que se fazia sentir “era bom para os ossos”. Entretanto, pede-nos um número e vamos para a página 128. Calha-nos “Estado de Dúvida”, canção do disco homónimo dos Xutos & Pontapés, de 2009, que, segundo Tim, tem um estilo à Nine Inch Nails, banda norte-americana de Industrial Metal.
 
“Há por aí quem queira lutar?”, lê. “Sou eu!”, respondemos. “Alguém que queira realmente mudar?”, continua Tim. “Estou cá!”, gritamos.
 
“A conversa já vai longa…”, medita. “Conheço a Teresa Salgueiro há anões, como dizia o outro. Ela esteve na origem da Resistência. Fazia parte do coro de vozes femininas.”, continua. “Um dia, convidou-me para uns concertos e eu dei-lhe uma canção. Vou tentar tocá-la, com o livro no colo. Não me lembro da letra. Fala sobre a passagem do tempo. Uma espécie de tic-tac…”. Durante breves momentos, tenta encontrar o tom, nas cordas da guitarra. Engana-se. “É o que dá não ensaiar!”, admite.
 
“Ainda aí está alguém?”, pergunta, no final da música. Depois, agradece a paciência e tudo o que temos feito por si, ao longo dos anos. “É aqui que me revelo e que me vou redescobrindo.”.
 
Só mais uma história…
 
“Uma amiga convidou-me para fazer um fado. Ela agradeceu, mas nunca chegou a gravá-lo.”, conta Tim, referindo-se a Mariza, ou “Maraiza”, recordando, de seguida, as alcunhas dos elementos de Rio Grande: Gaudêncio (Rui Veloso), Timóteo (Tim), Vitório (Vitorino), Gillette (João Gil) e Palmito (Jorge Palma). “Devo dizer que o Fado me passou ao lado.”, confessa. “Talvez não fosse bom ou estivesse inacabado”, reflete, dando como exemplo “Homem do Leme”, cuja letra escreveu em 1983, embora só tivesse saído do baú dois anos depois. Depois, conta que, mais tarde, voltou a encontrar a fadista, convidando-a para gravar a música, juntamente com Mário Laginha. “Isto é fado todos os dias! Soa a Alfama e à Madragoa!”, graceja, enquanto começa a tocar as primeiras notas de “Fado do Desencontro”, tema que acabaria por incluir no seu segundo disco a solo, o Um e o Outro, de 2006.
 
“Terminamos por aqui. Obrigado!”, despede-se Tim, antes de “Voar”. Esperamos que não para muito longe…
Quando desce o pano, abandonamos o São Jorge e voltamos a abraçar a “chuva dissolvente”. Levamos a cabeça cheia de histórias e “milhares de palavras” no bornal.
Artigo anteriorVício: A Revolução Dos Smash Burgers Chega A Lisboa
Próximo artigoQuis Saber Quem Sou Chega Ao Coliseu Dos Recreios

Deixe uma Resposta

Por favor digite seu comentário!
Insira o seu nome