Carmen De Bizet – A Ópera Que Todos Temos Nos Ouvidos

Carmen de Bizet
Carmen de Bizet

 A ópera Carmen, de Georges Bizet, passou esta semana por Portugal numa digressão que confirmou, uma vez mais, a sua popularidade inabalável. Sempre com salas cheias, o espetáculo foi apresentado no Porto, Águeda, Estoril e, ontem, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, onde assistimos à produção da Hesperian Symphony Orchestra, sob direção musical de António Ariza Momblant.

A orquestra ofereceu uma leitura cuidada da partitura, reforçando o contraste entre os momentos mais líricos e as passagens dramáticas. A protagonista (Maria Luisa Corbacho)  brilhou numa interpretação intensa e vocalmente segura. Deu vida a uma Carmen sedutora, orgulhosa e livre. Os aplausos repetiram-se ao longo da noite, em particular nas árias mais conhecidas — como a célebre “Habanera” ou a “Seguidilla” — mas também nas cenas coletivas, onde o flamenco se afirmou como elemento cénico e expressivo. Os bailarinos, com sapateado enérgico e uma linguagem corporal cheia de tensão e paixão, trouxeram um ritmo muito próprio ao espetáculo e aprofundaram a atmosfera andaluza imaginada por Bizet e pelos seus libretistas.

Um Fascínio Francês Pela Ibéria

No século XIX, os artistas franceses desenvolveram uma forte atração pela Península Ibérica, encarada como terra de emoções viscerais, paisagens exóticas e tradições arcaicas. A cultura espanhola, idealizada a partir do olhar estrangeiro, inspirou pintores como Manet, Delacroix ou Regnault, e seduziu compositores e escritores à procura de um cenário onde tudo fosse mais intenso, mais primitivo, mais sensual.

Foi neste contexto que Georges Bizet recebeu, em 1874, uma encomenda para compor uma ópera passada em Espanha. Inspirou-se na novela Carmen, escrita por Prosper Mérimée em 1845, e contou com dois libretistas parisienses — Henri Meilhac e Ludovic Halévy — para adaptarem a história ao palco. Nenhum dos três havia alguma vez estado em Espanha. A “Espanha” de Carmen nasceu, por isso, da imaginação, alimentada por leituras, músicas populares de inspiração ibérica, quadros e crónicas de viagem.

A Construção De Um Cliché Apaixonante

Na ópera Carmen, tudo contribui para criar um quadro de Andaluzia exótica e teatral. As ruas de Sevilha, as fábricas de tabaco, as praças de touros, os soldados, as gitanas e os taberneiros são peças de um puzzle construído a partir de ideias feitas. As músicas usam escalas e ritmos que soam “espanhóis” aos ouvidos franceses da época. Todos esses ambientes foram recriados, no Coliseu de Lisboa, com ajuda de telas de vídeo.

A “Habanera”, por exemplo, tem origem numa canção cubana de Sebastián Yradier, adaptada por Bizet com arranjos orquestrais que acentuam o exotismo. A ária do Toureiro Escamillo tornou-se um hino à virilidade e à bravura, contribuindo para perpetuar o arquétipo do matador galante e fatal.

Carmen, a protagonista, é o coração desta construção imaginada. Trabalhadora de uma fábrica de cigarros, assume a sua sexualidade sem pudores, seduz quem quer e recusa submeter-se a qualquer autoridade. É uma mulher que escolhe, que goza a sua liberdade, e que morre por isso. A sua personagem junta vários estereótipos: a cigana misteriosa, a mulher fatal, a criatura indomável. Tudo isto encantava — e assustava — o público da época.

Uma Estreia Marcada Pela Resistência

A criação da ópera não foi pacífica. O coro da Opéra-Comique, onde a peça estreou a 3 de março de 1875, opôs-se desde o início à encenação. Recusavam-se a executar ações individuais em palco, como acender cigarros ou representar lutas físicas. Consideravam que isso deturpava o seu papel coletivo. Os cantores do elenco principal, porém, defenderam a inovação da peça e ameaçaram abandonar o projeto se o coro e a orquestra não colaborassem.

A estreia foi um fracasso. A crítica acusou a música de ser demasiado sombria, com harmonias modernas, desprovida de “melodia”. O enredo foi considerado “imoral” por mostrar uma mulher emancipada, trabalhadora, que se envolve com vários homens e desafia os códigos morais da sociedade. Carmen foi vista como uma ameaça ao modelo de feminilidade submissa e idealizada.

Georges Bizet morreu três meses depois, a 3 de junho de 1875, sem saber que a sua obra se tornaria uma das mais interpretadas de sempre. Quando Carmen foi reapresentada em Viena, em 1883, já traduzida para alemão, o público reagiu com entusiasmo. A partir daí, nunca mais saiu do repertório internacional.

Um Escândalo Que Se Tornou Eterno

A longevidade de Carmen explica-se pela sua qualidade musical — uma partitura inovadora, rica em cor e emoção — mas também pela atualidade do seu conflito. A ópera continua a comover porque nos confronta com temas ainda dolorosamente presentes: a liberdade feminina, a obsessão masculina, o ciúme que conduz à violência.

Carmen não é uma heroína trágica no sentido clássico: é uma mulher que vive de acordo com os seus próprios princípios, que escolhe amar — e desamar — livremente. E que paga com a vida essa ousadia. A sua morte às mãos de Don José é o clímax dramático, mas também o retrato de um feminicídio, tema tão relevante hoje como em 1875.

Em Portugal, esta digressão da Hesperian Symphony Orchestra provou que há óperas que não envelhecem: reinventam-se a cada nova interpretação. E o público aplaudiu de pé!

Recorde outra ópera que esta companhia trouxe a Portugal:
Ópera Aida De Giuseppe Verdi Aclamada No Coliseu De Lisboa

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