O rock ainda une. No terceiro dia do NOS Alive 2025, foi o som da guitarra, reinventado e distorcido de mil maneiras, que funcionou como cola invisível entre artistas tão diferentes.
Muse atiraram fogo de artifício como se fosse preciso avisar Marte. Nine Inch Nails descarregaram o industrial para o meio da multidão como quem despeja parafuso e ferrugem no peito de cada um. Jet, esses saudosistas de calças justas e riffs gulosos, provaram que ainda se dança ao som de algo que cheira a gasolina e a cerveja morna. CMAT, diva country-pop vinda das franjas de Dublin, lembrou-nos que o rock também pode vir com glitter e sotaque. Os Future Islands trouxeram emoção em estado bruto, com os movimentos insanos de Samuel T. Herring a transformar o synthpop em catarse. Os Foster the People ofereceram uma viagem luminosa entre o indie e o dançável, com melodias que são tão eficazes quanto sedutoras.
Foi uma noite de contrastes, como sempre é quando se leva o rock a passear por estilos e geografias diferentes. A nostalgia encontrou-se com a reinvenção. No fundo, foi o rock a fazer o que sempre fez: transformar-se para não morrer.
No fim, ainda houve tempo para olhar para o futuro. A edição de 2026 já tem datas: 9, 10 e 11 de julho: e um nome que diz muito aos que aprenderam a dançar com batidas africanas em noites lisboetas do início do milénio: Buraka Som Sistema estão de volta. E isto, sim, promete abanar o chão de Algés.
Nine Inch Nails: a Beleza Sombria de um Caos Controlado
O industrial nunca soou tão humano. No regresso a Portugal, os Nine Inch Nails fecharam o palco NOS com um concerto em forma de exorcismo coletivo. O rock industrial, o metal e o punk não foram apenas referências sonoras, foram matéria-prima para uma descarga emocional quase física. No palco principal, a eletricidade era palpável e vinha de mais do que cabos e luzes: vinha de dentro.
Trent Reznor, como maestro de um furacão cuidadosamente coreografado, não precisou de grandes palavras para dominar. Mas quando falou, foi com a intensidade que atravessa toda a sua música. “Estamos felizes por estar aqui. Esta é a nossa última noite na Europa. Estamos há algum tempo em digressão”, disse. “Vejo-vos a vocês e a lua e sinto que é aqui que devo estar. Obrigado por fazerem parte disto.” Houve silêncio. E depois, mais estrondo.
O alinhamento começou com uma rajada frontal: “Somewhat Damaged”, “Wish”, “Mr. Self Destruct” e “March of the Pigs” atiraram o público para dentro de uma espiral de ruído e pulsação, onde tudo parece desmoronar para se voltar a erguer: mais forte, mais sombrio, mais real. Não há concessões em palco. A luz é mínima, os visuais são hipnóticos, a música é uma parede que avança.
Mas os Nine Inch Nails não se limitam a esmagar. Também elevam. Em “Copy of A”, as camadas eletrónicas desenharam uma paisagem quase cósmica, onde os corpos dançaram com os olhos fechados. “The Perfect Drug” foi talvez o momento mais frenético da noite, com o seu ritmo quebrado e a voz de Reznor a cortar como vidro. É música que não pede permissão, entra e fica.
E depois veio o final. “The Hand That Feeds” incendiou os últimos resquícios de contenção na multidão, antes de “Head Like a Hole” ser gritada como se cada verso fosse uma declaração de guerra pessoal. “Hurt”, inevitavelmente, encerrou tudo. Um silêncio quase respeitoso antecedeu o primeiro acorde. Um hino ao sofrimento, sim, mas também à sobrevivência.
O público saiu visivelmente satisfeito deste mergulho em águas negras que, contra todas as expectativas, purificam. Porque há noites em que o rock não é só música, é necessidade.
Muse: a Ópera Distópica
Chamados à última hora para substituir os Kings of Leon, os Muse fizeram mais do que preencher o lugar: dominaram-no. No seu 17.º concerto em solo português, Bellamy e companhia mostraram que a engrenagem continua afinada ao milímetro, mesmo depois de décadas na estrada. E sim, ainda há espaço para surpresas.
A viagem começou com “Unravelling”, tema inédito que abre caminho ao novo álbum da banda. Um início inesperado e sombrio, quase um trailer sombrio, que nos atirou de imediato para dentro de uma narrativa distópica, o território onde os Muse sempre se sentiram em casa. O palco, futurista e monumental, parecia saído de um cruzamento entre Blade Runner e uma ópera espacial, com jogos de luz e pequenos ecrãs a multiplicar imagens de vídeo e a amplificar o dramatismo de cada canção.
Logo a seguir, vieram os hinos e com eles, a resposta arrebatadora do público que encheu o recinto de Algés. “Psycho”, “Madness” e “Plug In Baby” foram recebidos como velhos amigos que ainda sabem fazer tremer o chão. Em “Time Is Running Out”, os braços ergueram-se em uníssono. Em “Supermassive Black Hole”, a dança invadiu o público. E quando chegou “Uprising”, o apelo à rebelião transformou o recinto num coro gigantesco de vozes em resistência.
Chris Wolstenholme, baixista da banda, surgiu em palco com uma camisola da Seleção Nacional com o nome de Diogo Jota. Um gesto simples, mas certeiro, a plateia respondeu com uma ovação. Mais do que simpatia, foi um sinal claro de que os Muse conhecem o seu público e sabem como fortalecer os laços que os unem há já mais de duas décadas, desde a primeira vez em Portugal, no mítico Festival da Ilha do Ermal, em 2000.
A componente visual foi, como sempre, pensada ao detalhe. O concerto teve muita pirotecnia desde os primeiros temas, com explosões sincronizadas, lança chamas e faíscas a sublinhar cada guinada de ritmo. E depois, claro, “Knights of Cydonia”, a derradeira cavalgada épica, onde tudo: guitarras, sintetizadores, bateria e multidão, convergiu num grande clímax.
Já na reta final, esse lado explosivo ganhou ainda mais força: “Undisclosed Desires” mergulhou-nos num ambiente mais íntimo, antes de “Starlight” nos levantar os olhos para o céu, ao ritmo de fogo de artifício disparado sobre o próprio palco.
Entre tecnologia, distopia os Muse continuam a fazer um rock que tanto pisca o olho à grandiosidade do Queen como à urgência do punk. E em Portugal, país onde colecionam memórias e salas cheias, a relação só parece ganhar mais força.
Jet: Rugido Vintage com Cheiro a Gasolina
Há concertos que funcionam como cápsulas do tempo, e o dos Jet ontem foi precisamente isso: uma viagem direta aos anos 2000, onde o rock cheirava a gasolina e a t-shirts suadas.
Vindos de Melbourne, os quatro australianos: Nic Cester, Chris Cester, Cameron Muncey e Mark Wilson, traziam um grande trunfo: “Are You Gonna Be My Girl”, e bastaram 30 segundos desta canção para perceber que o motor ainda ronca. O público reagiu como se tivesse estado duas décadas à espera deste momento. Talvez tenha mesmo estado.
A banda celebrou em palco os 20 anos de Get Born, disco de estreia que os lançou para o mundo em 2003 e vendeu mais de 6,5 milhões de cópias. O alinhamento foi uma ode a essa época: “Rollover DJ”, “Look What You’ve Done”, “Put Your Money Where Your Mouth Is”. Todos os riffs certos no lugar certo.
O final foi com “Cold Hard Bitch”, a martelar como um Camaro em excesso de velocidade.
Jet não reinventaram nada. Mas relembraram-nos do que é um concerto de rock: suor, distorção e refrões que se gritam de olhos fechados.
CMAT: Country-Pop Irreverente
O primeiro grande momento deste último dia de NOS Alive foi protagonizado por uma mulher de cabelos ruivos e coração irlandês, que chegou para desconcertar, cantar e, claro, divertir: CMAT. A artista, cujo nome verdadeiro é Ciara Mary-Alice Thompson, fez ontem a sua estreia em palcos portuguese. Provou que é possível começar um festival com lágrimas nos olhos e um sorriso na cara.
É raro que uma estreia seja tão certeira. Com um repertório que cruza a introspeção lírica da folk, o brilho do pop e o dramatismo do country, CMAT apresentou-se com a confiança de quem já sabe que conquistou a audiência. Mesmo que, até então, muitos dos presentes só a conhecessem de nome.
Entre os temas de If My Wife New I’d Be Dead (2022), e do mais maduro Crazymad, for Me (2023), CMAT cantou sobre amores falhados, desilusões modernas, a alienação dos tempos atuais e a absurda beleza de continuar a acreditar. Canções como “I Wanna Be a Cowboy, Baby!” e “Stay for Something” foram recebidas com entusiasmo e alguma surpresa. Mesmo quem não sabia bem ao que ia, ficou rendido com a sinceridade desconcertante e o tom que oscila entre o cómico e o melancólico.
Não faltou teatralidade, provas em direto do tão nacional pastel de nata, nem declarações de amor a um público que a artista parecia genuinamente feliz por encontrar.
Future Islands: um Delírio Synth-Pop até às 2h30 da Manhã
O relógio marcava 01h15 quando Samuel T. Herring entrou em palco como se fosse a coisa mais natural do mundo: cantar para milhares de pessoas a horas a que, num dia normal, estaria a meio de um sonho. A verdade, porém, é que nada nos Future Islands é exatamente normal. E quem ficou para os ver no Palco Heineken, ainda por cima depois de um dia cheio e de uma noite que ameaçava ser longa, não teve qualquer dúvida disso.
Havia espaço, sim, mas não vazio. Um dos factos curiosos desta edição do festival é que, mesmo quando o Heineken parece cheio, continua a haver espaço para mais um grupo de amigos, uma toalha no chão, ou alguém que dança sozinho como se ninguém estivesse a olhar. É o tipo de detalhe que só se percebe ao vivo e que encaixa perfeitamente na lógica da banda de Baltimore: intimidade numa escala massiva.
Samuel T. Herring, com o seu habitual ar de crooner descompensado, de alma em transe e corpo em luta, abriu com “King of Sweden” e foi o suficiente para deixar claro que a noite ia ser tudo menos morna. O homem canta como se o microfone estivesse ligado ao coração. Mas dança como se o chão estivesse a fugir-lhe dos pés.
A energia do vocalista é difícil de descrever: parece um pugilista de voz trémula e coração aberto. Em “The Tower”, atirou-se ao chão como se estivesse num exorcismo pessoal. Em “Plastic Beach”, desatou a dar murros no peito. Já em “A Dream of You and Me”, foi puro romantismo synth com rugidos ocasionais. É esta tensão entre suavidade e raiva, doçura e brutalidade, que transforma cada atuação dos Future Islands num exercício de catarse coletiva.
O alinhamento alternou momentos de melancolia dançável com explosões emocionais. “Peach” soou luminosa como um verão antigo. “Give Me the Ghost Back” foi escura, densa, quase fúnebre. E quando chegou “Seasons (Waiting on You)”, o hino maior, a canção que os tornou virais no Letterman e num marco indie da década passada, o Heineken teve o seu momento de comunhão. Braços no ar e refrão muito gritado.
A certa altura, Herring já estava encharcado. De suor, de emoção, de cansaço talvez. Mas não parava. Pulava, gritava, girava sobre si mesmo. Às 2h25, a produção decidiu cortar-lhe o som do microfone, talvez por respeito ao horário, talvez porque não sabiam como travá-lo de outra forma. Mas ele continuou a dançar, como se estivesse sozinho na sala, como se aquele festival ainda fosse só um sonho de miúdos que começaram a fazer música em cassetes há quase vinte anos.
Em palco, os seus companheiros mantêm a compostura. Gerrit Welmers (sintetizadores) e William Cashion (baixo) são o contraste perfeito: estáticos, concentrados, fiéis ao minimalismo que define o som da banda. Mas é essa contenção que permite a Herring explodir. A fusão resulta. Sempre resultou.
Já com Long Flight, a fechar, ficou clara a principal lição desta madrugada tardia: os Future Islands não são uma banda que se ouve — são uma banda que se sente. No corpo, no peito, às vezes nas pernas que se recusam a parar de dançar.
À saída, muitos comentavam o mesmo: “Valeu a pena esperar.” Mesmo às 2h30 da manhã. Mesmo com o microfone cortado.
Ainda conseguimos ir espreitar…
17h50 Dead Poet Society com Estrondo
O sol ainda ia alto quando os Dead Poet Society subiram ao Palco Heineken e o calor não foi desculpa, nem para a banda, nem para o público que os recebeu com entusiasmo. Oriundos de Boston, e com o nome de quem promete versos inflamados e guitarras sujas, foram uma antecipação do que iriamos ter ao longo do dia, com uma descarga elétrica que pôs fim a qualquer indiferença.
Jack Underkofler, de t-shirt preta da banda Black Sabbath não precisou de mais do que os primeiros acordes de “.geórgia.” para agarrar o público pela garganta. A sua voz, melódica, rouca, tensa, parecia vinda de uma cave iluminada a néon, onde se cruza o grunge tardio com uma sensibilidade pop contemporânea. A banda, afinada como um motor de corrida, entregou riffs densos, baixos graves como trovões e uma bateria que não dava tréguas.
Quem não os conhecia, ficou convertido e fez-se ao moshpit. O álbum -!-, lançado pela Spinefarm, esteve bem representado, com destaque para “CoDA” e “American Blood”, dois temas que funcionaram como rastilhos em pólvora seca.
20h25 Amyl and the Sniffers: Punk, Suor e Desobediência
Ainda havia luz do dia, mas Amy Taylor já chegou como se estivesse a escapar da prisão: olhos vidrados, energia elétrica, camisola rasgada pelo ímpeto. É difícil saber onde acaba o concerto e começa o motim, mas isso pouco importa. Amyl and the Sniffers trouxeram uma descarga de adrenalina punk, destilada com precisão australiana.
O quarteto de Melbourne, conhecido por espetáculos curtos e demolidores, apresentou-se com o peso do novo disco Cartoon Darkness nos ombros, um peso que carregam com prazer. Amy, em modo predador, percorre o palco como se cada canção fosse uma luta de boxe: “U Should Not Be Doing That” transforma-se num hino à desobediência, enquanto “Big Dreams” soa como um lamento embriagado cantado à beira de um precipício.
Há quem diga que o punk morreu nos anos 80. Amy Taylor responde com um esgar, depois com um pontapé no ar, depois com um berro rasgado que varre os campos de relva artificial. Ao seu lado, a banda não se desfaz nem por um segundo. Guitarra e baixo soam como se tivessem sido afinados com gasolina, e a bateria de Bryce Wilson bate com a urgência de quem quer acordar um país inteiro.
O público, inicialmente curioso, acaba em transe, empurrado, suado, cúmplice. Já não estamos num festival: estamos num clube suburbano com cheiro a cerveja e paredes a tremer. No fim, Amy agradece com uma gargalhada, como quem diz: “Sobreviveram? Boa. Nós também.”
22h50 Foster The People: A Pop Alternativa no Seu Estado Mais Febril
Mark Foster parece ter um pacto com o ritmo. Ontem, no NOS Alive, o vocalista e líder dos Foster The People fez da eletricidade uma forma de empatia.
Conduzindo o público por um alinhamento que oscilou entre a nostalgia de “Pumped Up Kicks” esse assobio sombrio que embalou uma geração, e os brilhos mais recentes de ”Lost in Space”, o primeiro sinal de vida de Paradise State of Mind, o novo álbum.
Desde 2009, que os Foster The People sabem mostrar que é possível ser alternativo sem abdicar da melodia contagiante. O público sabe disso e ontem esteve lá, de pés bem assentes na terra, a dançar ao som de “Houdini”, como se o mundo ainda fizesse sentido.
No fim, o que ficou não foi só o eco das guitarras nem os restos de glitter colados ao suor: foi a prova de que o rock, esse velho corpo mutante, ainda sabe dançar no fio da navalha entre passado e futuro.
No NOS Alive, resistiu-se à tentação do algoritmo e escolheu-se, por três dias, o volume máximo como forma de comunhão. Talvez seja isso que ainda nos une: o ruído certo, no momento certo, a dizer que estamos vivos. Mesmo que só até ao próximo encore.
