O primeiro dia de MEO Kalorama trouxe ao Parque da Bela Vista, em Lisboa, com um ambiente descontraído, próprio de um festival que privilegia a diversidade em vez das multidões. Um encontro para quem gosta de apreciar música ao vivo, em noites de verão. O festival permitiu descobrir talentos emergentes e reencontrar nomes consagrados, num recinto com uma afluência moderada.
Pet Shop Boys
Os Pet Shop Boys foram, sem dúvida, os grandes protagonistas da noite. A dupla britânica apresentou um concerto já bem rodado da sua Dreamworld Tour — que muitos ainda recordavam da edição de 2023 do Primavera Sound Porto —, mas a previsibilidade não roubou brilho ao espetáculo. Pelo contrário: foi precisamente essa segurança e maturidade que garantiram uma atuação eficaz, preenchida de momentos de comunhão com o público. Entre luzes, visuais futuristas e os incontornáveis êxitos dos anos 80, ninguém ficou indiferente. A festa fez-se com grande furor e nostalgia.
O cenário manteve-se fiel à estética pensada pela banda: dois candeeiros de rua dominam o palco, cada um iluminando um dos músicos, como se de personagens solitárias de uma peça urbana se tratasse. À frente, Neil Tennant e Chris Lowe surgem com estruturas geométricas no rosto, uma espécie de máscara que esconde mas também afirma identidade, num jogo visual que atravessa todo o espetáculo.
A noite começou com a energia de “Suburbia” e “Can You Forgive Her?”, numa abertura forte que imediatamente captou a atenção do público. As estruturas faciais desapareceram em “Opportunities (Let’s Make Lots of Money)”, marcando uma transição natural para o coração da experiência Dreamworld, onde cada canção é pensada como um quadro visual e emocional.
Ao longo de hora e meia, desfilaram êxitos incontornáveis como “Rent”, “Domino Dancing”, “The Pop Kids”, “Love Comes Quickly” ou “Paninaro”, sempre acompanhados por projeções, jogos de luzes e coreografias subtis que reforçam a teatralidade única dos Pet Shop Boys. Durante “Love Comes Quickly”, Tennant percorreu calmamente o palco da esquerda para a direita, num gesto simples e contínuo, que deu nova dimensão ao tema.
Neil Tennant falou várias vezes com o público, agradecendo o entusiasmo e a energia lisboeta. “Lisboa, que bela cidade. Gostamos muito de estar aqui”, disse, visivelmente emocionado, após a animada “Domino Dancing”. Mais à frente, apresentou “What Have I Done to Deserve This?”, originalmente gravada com Dusty Springfield. Explicou que, esta noite, é interpretada por Clare Uchima, voz do coro, que lhe deu uma nova alma ao vivo.
O concerto foi também uma demonstração de reinvenção. Tennant trocou de roupa várias vezes, regressando com uma gabardina prateada, pronto para a sequência final que incluiu “Dreamland”, “Heart” e “It’s Alright”, mergulhada em ritmos house. “It’s a Sin” fez levantar os braços do público numa das maiores explosões da noite.
O encore trouxe ainda mais clássicos. “West End Girls” surgiu com o teledisco original em fundo. A viagem de 1986 até agora pode ser evidente visualmente, mas no timbre, não há dedo a apontar e o público aplaudiu com entusiasmo. “Obrigada Lisboa, you are amazing”, disse Tennant antes de regressar ao palco para mais uma despedida. “Being Boring” encerrou o concerto, perfeito para um adeus sentido. Antes do último refrão, Tennant apresentou os músicos e agradeceu uma vez mais. Deu mais uma volta ao palco e ficou a saborear a ovação final.
The Flaming Lips
The Flaming Lips encerraram a primeira noite de festival Kalorama. Trouxeram ao palco um delírio visual e teatral, numa celebração psicadélica onde tudo — literalmente tudo — pode acontecer.
Foi com uma corneta que Wayne Coyne, líder dos The Flaming Lips, deu início a uma das atuações mais insólitas e memoráveis da primeira noite do festival Kalorama, no Parque da Bela Vista. “Gritem, gritem! E se souberem esta, cantem!”, atirava o vocalista entre explosões de luzes estroboscópicas, músicos e figuras gigantes insufláveis.
A celebração psicadélica teve um foco claro: Yoshimi Battles the Pink Robots, o álbum de 2002, que a banda tocou quase na íntegra, e que serviu de guião para a narrativa fantástica que tomaria conta do palco. As primeiras notas de “Fight Test” abriram caminho para o que se seguiria — não apenas música, mas uma verdadeira encenação futurista. Insufláveis gigantes, em forma de robots e criaturas cor-de-rosa invadiram o cenário ao som de “One More Robot / Sympathy 3000-21”, mergulhando o público numa viagem cósmica de sons e imagens.
O tom era de paródia, mas com uma entrega emocional desarmante. A teatralidade nunca soou forçada — é, afinal, marca registada da banda de Oklahoma. Coyne, com o seu habitual ar de profeta, comandava a multidão como quem dirige uma orquestra de alienígenas. “Gritem, gritem” pedia insistentemente. Quando chegou a vez de “Yoshimi Battles the Pink Robots, Pt. 1”, o público respondeu em uníssono, num coro em que se misturavam sorrisos e espanto. O concerto, que iniciou à 1h30 da manhã, manteve o público bem acordado, a dançar, entre o nonsense e a melancolia pop.
Os Flaming Lips continuam a ser uma referência da música alternativa: há poucos artistas capazes de conjugar imaginação desmedida, ironia e emoção de forma tão eficaz. O seu concerto no Kalorama foi um final glorioso para a primeira noite do festival. Uma viagem inédita para quem ficou até ao final!
A banda até pode vir de outro planeta, mas sabe perfeitamente como tocar para os habitantes do planeta Terra.
Father John Misty
Antes disso, e de Pet Shop Boys, Father John Misty ofereceu uma atuação irrepreensível, tanto no plano estético como musical. Com uma presença serena mas cheia de magnetismo, o músico norte-americano conduziu o público pelo alinhamento, onde cada canção soou como um capítulo de um romance em tom maior.
Foi Josh Tillman — o homem por detrás da persona Father John Misty — quem arrebatou pela elegância. Tillman percorreu o palco como um verdadeiro performer: passeou o seu charme, gesticulou, expressou as letras com o corpo, ficou de joelhos quando o dramatismo assim o exigia. Além de cantor Josh Tillman é uma figura que cativa, com pose de artista de cinema dos anos dourados de Hollywood, mas com a ironia de um cronista desencantado do século XXI.
Entre clássicos como “Nancy From Now On “e “Mr. Tillman”, e momentos mais recentes, como “I Guess Time Just Makes Fools of Us All” — uma das faixas mais melancólicas e cinematográficas da fase mais recente da sua carreira —, Father John Misty conduziu o público por um concerto onde cada palavra parecia pesar.
Este concerto surge poucos meses depois do lançamento de I Love You, Honeybear Demos, Etc. (2025), uma edição especial que assinala os dez anos de um dos seus discos mais emblemáticos.
A fechar, ofereceu “I Love You, Honeybear”, tema que dá nome ao disco de 2015 e que continua a ser um dos seus momentos mais arrebatadores em palco. Foi uma despedida em tom de confissão épica, onde o amor é cantado como um absurdo sublime.
Sevdaliza
Sevdaliza, com a sua fusão hipnótica de eletrónica e foi outro dos momentos de destaque, tal como os franceses L’Impératrice, com o seu pop sedutor e cheio de groove.
Sevdaliza nasceu no Irão, cresceu na Holanda e construiu um percurso artístico que desafia convenções. Cruza géneros como o trip-hop, R&B alternativo, música eletrónica e pop experimental. A sua arte é também visual, corporal e política.
O álbum Shabrang (2020) marcou um ponto de viragem na carreira da artista, com temas como “Habibi” e “Lamp Lady” a explorar dor, desejo e transcendência. Em 2022, o EP Raving Dahlia continuou esse caminho de provocação, refletindo também sobre o lugar da mulher na indústria e na sociedade.
Nos últimos dois anos, Sevdaliza reforçou a sua presença internacional com colaborações: “Ride or Die, Pt. 2”, com Villano Antillano e Tokischa, um dos temas que cantou esta noite em Lisboa, trouxe-lhe novos públicos e mostrou a sua fluência nos códigos da música latina urbana. “Nothing Lasts Forever”, parceria com Grimes, revelou uma faceta mais etérea e tecnológica. Mas foi com “Alibi” (2024), ao lado de Pabllo Vittar e Yseult, que a artista atingiu um novo pico de popularidade: o single tornou-se viral nas redes sociais e entrou nos tops globais. O sucesso no Parque da Bela Vista, foi evidente.
Sevdaliza move-se entre linguagens, idiomas e influências culturais com uma fluidez que desafia fronteiras. Ouvimos esta noite, “No Me Cansaré”, gravado no Brasil, com Karol G, assim como o recente “Heroína”, com La Joaqui. Sevdaliza aposta num discurso que cruza a intimidade feminina com temas sociais e políticos.
Com o novo álbum Heroina previsto para 2025, tudo indica que Sevdaliza continuará a sua metamorfose criativa.
Capital da Bulgária
Ao início da tarde, fomos conhecer duas novas propostas nacionais: Capital da Bulgária e Cara de Espelho.
Capital da Bulgária é o nome artístico de Sofia Reis. A artista apresentou-se ao público em 2021 com o EP Pequeno-Almoço. Abriu o concerto com o tema “Vem comigo”. Com um tom direto, sem artifícios, anunciou “eu sou a Capital da Bulgária, vou tocar aqui umas musiquinhas para vocês. Espero que gostem”.
E o público começou-se na juntar na curta zona de sombra, na lateral direita da frente ao palco, para descobrir uma das novas vozes da música portuguesa.
Explicou que trazia músicas novas, mas abreviou as explicações para passar para a música.
Em 2024, lançou o álbum de estreia Contei e deixei que tu me julgasses — um título que já denuncia o tom confessional do trabalho. Composto por 13 canções, o disco funciona quase como um diário sonoro, onde cada faixa revela um fragmento da sua identidade, dos seus dilemas e das suas emoções. Sofia não esconde nada: coloca-se ao centro da narrativa, deixa-se observar, analisar, julgar — com todas as fragilidades e contradições à vista.
O álbum é também um manifesto de independência artística. Capital da Bulgária está presente em todas as fases do processo criativo, desde a composição à produção, passando pela direção visual do projeto.
Antes de tocar o seu grande êxito “Lisboa”, apresentou os dois músicos que a acompanharam: Zé Ganchinho no baixo e Antunes na bateria. Anunciou mais duas músicas antes de fechar “Família” e “Morangos”, com que se despediu. Um tema muito alegre em que foi à plateia com uma caixa de morangos, para distribuir pelo público.
Cara de Espelho
Cara de Espelho é um projeto musical que reúne músicos com percursos distintos, mas uma visão artística comum. A banda reflete uma síntese criativa de experiências, sonoridades e influências que moldaram o panorama musical nacional nas últimas décadas. Entre as referências estão nomes como Deolinda, Ornatos Violeta, Gaiteiros de Lisboa, A Naifa e Humanos — um leque que traduz a diversidade e riqueza da música portuguesa atual.
O ponto de partida para este projeto foram as palavras e composições de Pedro da Silva Martins — conhecido pelo seu trabalho com Deolinda e com artistas como Ana Moura, António Zambujo e Lena d’Água. A partir das suas letras, juntaram-se os arranjos e construções instrumentais de Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa), bem como as influências de figuras emblemáticas como José Afonso, Fausto e o Grupo de Acção Cultural (GAC). O baixo fica a cargo de Nuno Prata, dos Ornatos Violeta, e as guitarras de Luís J Martins, ligado a Deolinda, António Zambujo e Cristina Branco. À percussão está Sérgio Nascimento, que colaborou com Sérgio Godinho, David Fonseca e Humanos.
A voz que dá corpo a este universo musical pertence a Maria Antónia Mendes, associada a A Naifa e às Señoritas. A sua interpretação confere um carácter único e inconfundível às canções de Cara de Espelho, que se destacam pela sonoridade singular e pela forma como combinam crítica e intervenção.
O projeto propõe um universo de canções com uma forte dimensão poética e social. Herda o espírito da canção de intervenção, mas explora novas formas de narrar o país e o mundo. A inspiração dos grandes cantautores portugueses está bem presente.
O nome Cara de Espelho não foi escolhido ao acaso. É o título de um dos temas do grupo e simboliza o reflexo das virtudes e fraquezas humanas, as pequenas e grandes dores, os dilemas de ser cidadão num mundo em constante mudança. Cada canção é um convite à reflexão e à ação.
Encontrámos em Cara de Espelho exercício artístico de identidade e memória coletiva, com os olhos postos no presente e no futuro da música portuguesa.
Esta sexta-feira o MEO Kalorama volta a abrir portas às 16h00, até às 03h do dia seguinte. É um dia com muita diversidade musical, desde o hip-hop de Azealia Banks e a pop experimental de FKA twigs, até à eletrónica e dance music de Róisín Murphy e os DJs no Panorama Lisboa.
Estão previstas as seguintes atuações:
Palco MEO: 17h00 – Cíntia; 19h30 – Best Youth; 21h40 – Azealia Banks; 23h50 – Scissor Sisters; 02h00 – FKA twigs
Palco San Miguel: 17h30 – Heartworms; 18h40 – Maquina.; 20h35 – Model/Actriz; 22h45 – Boy Harsher; 00h55 – Róisín Murphy
Panorama Lisboa: 17h00 – Viegas; 19h30 – Identified Patient; 22h30 – Kelly Lee Owens; 23h40 – Helena Hauff.
Os bilhetes encontram-se à venda nos locais habituais pelo valor de 55 euros.
